segunda-feira, 11 de maio de 2015

Memórias de um tempo em que escrever fazia barulho

Gustavo Maia Gomes

Sempre gostei de escrever. Quando tinha dez anos, bateram-me à porta. Era gente do Grupo Escolar Ageu Magalhães, onde eu estudava. Isso em 1957. Disse que minha redação havia sido escolhida em algum concurso. Não sei por que precisou vir à minha casa, se eu estava todos os dias na escola. Mais tarde, a professora leu comigo o texto. Percebi que tinha a letra deitada, como se um vento forte soprasse sobre a página, da esquerda para a direita, e ela me fez ver que eu não separava os parágrafos. Mas elogiou o trabalho.

Poucos anos depois, apaixonei-me pelas máquinas de escrever. Todo tempo, havia uma em minha casa. Às vezes, duas. Meu pai, Mauro Bahia, tinha um emprego público, mas também advogava. Precisava apresentar suas petições no padrão exigido. Com frequência, Stella, minha mãe, as datilografava -– e ela o fazia com técnica perfeita, usando todos os dedos das duas mãos. Nunca adquiri essa habilidade (que ainda acho linda), embora os cursos de datilografia proliferassem nas esquinas, naquele tempo.


Minha primeira máquina de escrever foi uma Olivetti Lettera 22 igual a esta. Comprei-a em 1968, ou em ano próximo a este, quando era repórter do Jornal do Commercio e estudante de economia na Universidade Católica de Pernambuco. (Foto colhida num site de vendas da Internet, sem identificação de autor.) 
Eu usava as máquinas de meu pai com entusiasmo, filosofando sobre tudo. Se sou escritor, devo muito a elas. O texto datilografado mais antigo de que lembro é de 1963. Neste ano, Ivan, meu irmão, entrou na universidade e trouxe para casa uma revolução cultural iluminista. Rapidamente, nos tornamos revolucionários em política e iconoclastas em religião. Meu artigo começava com a frase “acredito que Deus existe” (logo, isso deixou de ser verdade) e continuava metendo o pau na Igreja Católica. (Ainda atual.)

Esse texto foi incluído por Ivan num jornalzinho datilografado cuja circulação se restringia à nossa própria casa. Mamãe, com certeza, o leu; não lembro se comentou. Dali em diante, escrevi muitos inéditos, sempre batendo teclas na Underwood portátil de meu pai, em memoráveis noites adentro. Até que um dia, no final de 1966, ele me fez a pergunta-desafio: — “Você gosta de escrever. Não quer trabalhar no Jornal do Comércio?” Eu disse sim. Mesmo sendo tímido como um marisco, topei na hora.

A ponte para tornar-me repórter chamava-se Wladimir Calheiros, nosso primo, a quem eu ainda não conhecia. Jornalista de mão cheia, trouxera para Pernambuco a revolução gráfica e de conteúdo que, pouco antes, havia sido feita no Rio de Janeiro pelo Jornal do Brasil. Editor Geral, era rígido. De uma feita, quando eu fui lamentavelmente furado pelo concorrente Diário de Pernambuco, chegou a mandar fazer uma anotação formal de advertência em meus registros. Depois, soube que deixara o dito por não dito.

Na verdade, fui um repórter medíocre. Adorei ser jornalista — uma das profissões mais interessantes já inventadas —, mas, enquanto estava ali, eu vivia outros planos. Estudava economia. Intuía que ser professor universitário seria caminho mais seguro para me tornar escritor, meu projeto mais precioso. Em parte, estava certo. Quase tudo de maior fôlego que publiquei até hoje está diretamente ligado à carreira universitária. Se não é grande coisa, dou a notícia de que algo melhor ainda está por vir.

Até as máquinas de escrever se tornarem obsoletas fui dono de três delas. A primeira, uma Olivetti Lettera 22 portátil, adquirida no tempo de repórter e estudante universitário, no Recife. 1968, por aí. Os trabalhos acadêmicos e alguns artigos jornalísticos que redigi nesse tempo trazem a marca de seus tipos. A segunda foi uma máquina elétrica (grande avanço tecnológico: o teclar tornou-se suave e mais gostoso; a qualidade da impressão melhorou muito), também Olivetti, que ainda hoje tenho comigo.

Essa segunda, comprei-a em São Paulo, para onde me mudei em 1971. Os colegas da Copersucar, certamente, não deviam gostar do barulho que a Olivetti Lettera 36 fazia. A regra daqueles anos era escrever à mão e passar o texto para a secretária datilografar, em outra sala. Desde os tempos da Underwood, contudo, eu aprendera a trabalhar diretamente na máquina. Na Olivetti de teclas macias escrevi as versões iniciais de minha tese de mestrado, completada depois que voltei para o Recife.


Em 1973, ou 1974, adquiri a máquina elétrica Olivetti Lettera 36, que conservo até hoje. (A foto é de uma máquina igual à que ainda possuo; de autor não identificado, foi colhida num site de vendas de produtos usados da internet.)
A propósito: outra grande inovação tecnológica aconteceu quando a IBM lançou umas máquinas grandes, de mesa, — elétricas, claro — com as matrizes das letras impressas em esferas trocáveis.  Achei sensacional poder introduzir itálicos no texto, ou usar tipos de letras menos comuns. Tudo isso que viria a se tornar trivial com os computadores, era uma grande novidade, então. Em 1976, de volta ao Recife, consegui ter uma daquelas IBM na minha sala de professor, e a usei intensamente. Pertencia à Universidade.

Quando fui morar nos Estados Unidos, em 1979, comprei ali minha terceira e última máquina de escrever. Creio que era uma Triumph, também elétrica e portátil, de cor azul. Como não escrevia os acentos, tinha utilidade limitada no Brasil. Por isso, em algum momento, a abandonei. Sua folha de serviços inclui a versão definitiva de minha tese doutoral. Mas meu dinheiro era curto, de modo que demorei a adquiri-la. A consequência foi que, numa regressão de hábitos, por um tempo, voltei a escrever à mão.

Ainda amo as máquinas de escrever. O que é isso onde escrevemos hoje — chame-o microcomputador, laptop, ou tablet — senão também uma moderna máquina de escrever? Silenciosa, sim; mais eficiente, sem dúvida. Mas não a ponto de me fazer esquecer a velha portátil Underwood que meu pai deixava em casa, sempre ao meu alcance. Ou as tantas Olivetti que havia na redação do Jornal do Comércio, umas pesadas de teclar, outras macias e preferidas por nove entre dez repórteres, inclusive, eu.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Antes da internet, as ondas curtas

Gustavo Maia Gomes

Quem sabe, hoje, o que são transmissões radiofônicas em ondas curtas? Pouca gente. Mas, até os anos 1980, elas eram o que mais se parecia com a internet. Meu pai, Mauro Bahia de Maia Gomes, muito as apreciava. Ele sempre tinha em casa um receptor Transglobe, o melhor da época.
Com os Transglobe, nós ouvíamos os noticiários da BBC de Londres, Voz da América, Rádio Pequim, Rádio Moscou, Deutsche Welle. Se não me trai a memória, também da Rádio França Internacional. Sempre à noite. De dia, as interferências atmosféricas inviabilizavam uma recepção satisfatória.
Todas transmitiam em português ou espanhol. A melhor era, sem dúvida, a BBC. As dos países comunistas só faziam proferir impropérios contra o "imperialismo ianque". A séria briga entre a China e a União Soviética, nos anos 1960, nós a pudemos acompanhar ouvindo as rádios dos dois países.
Emissoras "do Sul" (como costumávamos dizer) também podiam ser ouvidas no Recife. Creio que as mais bem captadas eram a Globo, do Rio, e a Bandeirantes, de São Paulo. As cariocas Tupi e Nacional entravam com boa qualidade de som. Igualmente, a Dragão do Mar, de Fortaleza.
Acompanhávamos por elas os jogos do Vasco, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, Corinthians, São Paulo. E programas humorísticos, como o "Balança, Mas Não Cai", da Nacional, que também era retransmitido localmente pela Rádio Jornal do Commercio.
Poucos amigos e colegas tinham o hábito de ouvir rádio em ondas curtas. Foi nosso pai quem nos iniciou, a Ivan e a mim, naquele mundo de notícias internacionais transmitidas e analisadas com detalhes e profundidade muito maiores do que lhes dariam os jornais da manhã seguinte.

(Publicado no Facebook, 6 de maio de 2015)