Gustavo Maia Gomes
Sempre gostei de escrever. Quando tinha dez anos, bateram-me
à porta. Era gente do Grupo Escolar Ageu Magalhães, onde eu estudava. Isso em
1957. Disse que minha redação havia sido escolhida em algum concurso. Não sei por
que precisou vir à minha casa, se eu estava todos os dias na escola. Mais
tarde, a professora leu comigo o texto. Percebi que tinha a letra deitada, como
se um vento forte soprasse sobre a página, da esquerda para a direita, e ela me
fez ver que eu não separava os parágrafos. Mas elogiou o trabalho.
Poucos anos depois, apaixonei-me pelas máquinas de escrever.
Todo tempo, havia uma em minha casa. Às vezes, duas. Meu pai, Mauro Bahia, tinha um emprego público, mas também advogava. Precisava apresentar suas petições no
padrão exigido. Com frequência, Stella, minha mãe, as datilografava -– e ela o
fazia com técnica perfeita, usando todos os dedos das duas mãos. Nunca adquiri essa
habilidade (que ainda acho linda), embora os cursos de datilografia proliferassem
nas esquinas, naquele tempo.
Eu usava as máquinas de meu pai com entusiasmo, filosofando
sobre tudo. Se sou escritor, devo muito a elas. O texto datilografado mais
antigo de que lembro é de 1963. Neste ano, Ivan, meu irmão, entrou na
universidade e trouxe para casa uma revolução cultural iluminista. Rapidamente,
nos tornamos revolucionários em política e iconoclastas em religião. Meu artigo
começava com a frase “acredito que Deus existe” (logo, isso deixou de ser verdade)
e continuava metendo o pau na Igreja Católica. (Ainda atual.)
Esse texto foi incluído por Ivan num jornalzinho
datilografado cuja circulação se restringia à nossa própria casa. Mamãe, com
certeza, o leu; não lembro se comentou. Dali em diante, escrevi muitos inéditos,
sempre batendo teclas na Underwood portátil de meu pai, em memoráveis noites adentro.
Até que um dia, no final de 1966, ele me fez a pergunta-desafio: — “Você gosta de
escrever. Não quer trabalhar no Jornal do
Comércio?” Eu disse sim. Mesmo sendo tímido como um marisco, topei na hora.
A ponte para tornar-me repórter chamava-se Wladimir Calheiros,
nosso primo, a quem eu ainda não conhecia. Jornalista de mão cheia, trouxera
para Pernambuco a revolução gráfica e de conteúdo que, pouco antes, havia sido
feita no Rio de Janeiro pelo Jornal do
Brasil. Editor Geral, era rígido. De uma feita, quando eu fui
lamentavelmente furado pelo concorrente Diário
de Pernambuco, chegou a mandar fazer uma anotação formal de advertência em meus
registros. Depois, soube que deixara o dito por não dito.
Na verdade, fui um repórter medíocre. Adorei ser jornalista —
uma das profissões mais interessantes já inventadas —, mas, enquanto estava ali,
eu vivia outros planos. Estudava economia. Intuía que ser professor
universitário seria caminho mais seguro para me tornar escritor, meu projeto
mais precioso. Em parte, estava certo. Quase tudo de maior fôlego que publiquei
até hoje está diretamente ligado à carreira universitária. Se não é grande
coisa, dou a notícia de que algo melhor ainda está por vir.
Até as máquinas de escrever se tornarem obsoletas fui dono
de três delas. A primeira, uma Olivetti Lettera 22 portátil, adquirida no tempo de
repórter e estudante universitário, no Recife. 1968, por aí. Os trabalhos
acadêmicos e alguns artigos jornalísticos que redigi nesse tempo trazem a marca
de seus tipos. A segunda foi uma máquina elétrica (grande avanço tecnológico: o
teclar tornou-se suave e mais gostoso; a qualidade da impressão melhorou muito),
também Olivetti, que ainda hoje tenho comigo.
Essa segunda, comprei-a em São Paulo, para onde me mudei em
1971. Os colegas da Copersucar, certamente, não deviam gostar do barulho que a
Olivetti Lettera 36 fazia. A regra daqueles anos era escrever à mão e passar o texto
para a secretária datilografar, em outra sala. Desde os tempos da Underwood,
contudo, eu aprendera a trabalhar diretamente na máquina. Na Olivetti de teclas
macias escrevi as versões iniciais de minha tese de mestrado, completada depois
que voltei para o Recife.
A propósito: outra grande inovação tecnológica aconteceu
quando a IBM lançou umas máquinas grandes, de mesa, — elétricas, claro — com as
matrizes das letras impressas em esferas trocáveis. Achei sensacional poder introduzir itálicos no
texto, ou usar tipos de letras menos comuns. Tudo isso que viria a se tornar trivial
com os computadores, era uma grande novidade, então. Em 1976, de volta ao
Recife, consegui ter uma daquelas IBM na minha sala de professor, e a usei
intensamente. Pertencia à Universidade.
Quando fui morar nos Estados Unidos, em 1979, comprei ali
minha terceira e última máquina de escrever. Creio que era uma Triumph, também elétrica
e portátil, de cor azul. Como não escrevia os acentos, tinha utilidade limitada
no Brasil. Por isso, em algum momento, a abandonei. Sua folha de serviços inclui
a versão definitiva de minha tese doutoral. Mas meu dinheiro era curto, de modo
que demorei a adquiri-la. A consequência foi que, numa regressão de hábitos, por
um tempo, voltei a escrever à mão.