Gustavo Maia Gomes
Continuo a
ler Geração D, de Sérgio C. Buarque
(2023). É uma saga dos homens e mulheres brasileiros de classe média, parte
deles estudantes universitários e todos moradores de grandes cidades, que
tinham mais ou menos vinte anos em 1964. Como é o caso de quem escreveu o
romance. E o meu. Em 8/1/2024, cometi a imprudência de publicar no Facebook uma “Resenha muitíssimo
prematura” do livro, quando havia lido apenas cem páginas do mesmo. Agora
reincido, falando sobre as cem páginas seguintes, que é até onde cheguei, na
leitura, neste momento.
Mais personagens
são introduzidos nos capítulos 14 a 26, de que trato neste texto. Cada uma traz
à tona um tema específico. Olga, por exemplo, (este é um livro em que – com o
meu apoio entusiástico – as mulheres ofuscam os homens, ao menos até aqui),
entra no enredo pelo caminho da militância de esquerda: partidária, revolucionária,
marxista. Nessa corrente, a atuação política objetivava promover a revolução do
proletariado, considerada a única via eficaz para esmagar o capitalismo e
substituí-lo pelo socialismo, vestíbulo do paraíso terrestre prometido por Marx.
(Se os proletários haviam sido informados de seu destino manifesto ou de sua responsabilidade
tamanhamente ímpar na história universal é uma pergunta que nem se podia fazer;
o que os jovens de classe média teriam a ganhar com aquilo tudo, ainda menos.
Mas, o que eles teriam a perder – como perderam – era bastante óbvio.)
Acontece que
Olga foi presa e, quando saiu da cadeia, após curta estada, estava confusa, duvidando
das certezas que tinha antes. Indo passar uns dias com a família na sua pequena
cidade de Minas Gerais, ali conheceu outros jovens e terminou se interessando
pelas ideias alternativas de uma das novas amigas. As duas, insatisfeitas com o
estado atual e as perspectivas futuras da sociedade em que viviam, juntaram duas
dúzias de homens e mulheres e foram morar no campo, isolados, onde criaram uma
comunidade hippie. Já que não podiam derrubar o capitalismo, que vivessem à
margem dele, autossuficientes, plantando o próprio alimento, consumindo muito
pouco, além disso. Elas implementam o plano, mas a libertação que obtém é
ilusória: sua revolução substituta se instala numa terra cedida pelo pai de
Olga, o grupo toma empréstimos bancários para financiar a entressafra e vende no
mercado mais próximo seus excedentes de produção, a fim de comprar os artigos
que necessitam consumir, mas não produzem. (A maconha devia ser um deles,
embora Sérgio não deixe isso explícito.)
Não sei como
a experiência hippie de Olga terminará, pois o livro tem mais 300 páginas, além
das já lidas por mim. Mas vejo que, na comunidade a que chamam,
sintomaticamente, Walden (Acorda, Thoreau!), não existiam apenas alfaces e
batatas. Também havia carnes, ou melhor, amores carnais. Não sei se foi isto o
que Sérgio Buarque nos quis dizer, mas passei a sentir, depois da leitura dessa
parte do Geração D, que, mesmo no
paraíso socialista, seja ele do tipo “científico”, como o do partido repudiado
pela personagem, ou “utópico”, como o da comunidade rural de Olga e suas
amigas, a natureza humana não nos abandonará. Traições, intrigas, manobras, paixões
amorosas arrebatadoras, homens que gostam de homens, mulheres que gostam de
mulheres, ou que gostariam de gostar. Ainda não existia nos anos sessenta esta
riqueza letrerária do século 21 – LGBTQIA+ – mas, o que tínhamos nós, então, mesmo
num diminuto ajuntamento de pessoas no interior mineiro, já dava para preparar
a feijoada.
Outro assunto
trazido à nossa lembrança por Geração D é
o feminismo, então uma novidade (no Brasil, pelo menos), mais particularmente o
feminismo relacionado à luta contra as agressões físicas dos homens sobre as
mulheres. Agora, já estou falando de Helena, igualmente, presa e depois solta
por suspeita de ter cometido crimes políticos. Na casa da tia Julieta, onde vai
morar, por imposição do pai, ela percebe que a empregada doméstica apanha
rotineiramente do marido. Apanha e não reage: “ele me ama”, justifica-se; a tia
sabe, mas contemporiza: “você acha que ela pode sustentar três filhos sozinha,
sem o marido?” (pág. 120). Levado o motivo de sua revolta ao conhecimento dos
mentores políticos (com cujo partido ela continuava a se relacionar), Helena
ouve de um deles esta obra prima do pensamento teleguiado:
– Desculpe,
companheira, mas eu não acho que o partido deva se envolver nesse assunto, pelo
menos não ainda. Temos que concentrar todas as forças na luta contra a ditadura
e na organização da classe trabalhadora. É ingenuidade e visão pequeno-burguesa
pensar na condição da mulher como um fenômeno separado da exploração
capitalista (pág. 121).
Moça dotada
de personalidade forte, Helena não se intimidou. Com a ajuda de amigas e, mais
tarde, de uma deputada do partido oposicionista (ou do passava por isso,
naqueles tempos sombrios), ela fundou a “Fêmea, uma organização civil de defesa
dos direitos das mulheres contra a discriminação do machismo, para prestar
assessoria a mulheres vítimas de violência” (pág. 124). Era um lugar só de
mulheres, com a única missão de socorrer outras mulheres. As coisas estavam até
indo bem e assim poderiam ter continuado, não tivesse um homem entrado no
enredo. Ele começa com uma namorada, Norma, mas a troca por outra, a Helena de
quem estou falando. Tudo acontecendo no âmbito da Fêmea – e não sei se aqui
devo escrever essa palavra com letra inicial maiúscula ou minúscula –, de modo
que, presumivelmente, o jogo embolou no meio de campo e os transcendentes
princípios da iniciativa se viram obliterados pelos imanentes desejos de Helena
e de Norma.
Neste ponto,
eu quero inserir uns pensamentos próprios, pois à geração D também pertenço. A
esquerda tradicional, ortodoxa – essa que era a única, até recentemente – só
tinha um inimigo: o capitalismo, definido pela oposição entre a classe burguesa,
exploradora, que detinha o monopólio dos meios de produção (máquinas,
equipamentos, terras), e a classe proletária, explorada, dona apenas da sua
força de trabalho e, portanto, obrigada pela necessidade a alugá-la aos
capitalistas. Nessa visão do mundo, o capitalismo era tudo de ruim, mas havia
um Éden, um Nirvana, um Céu na Terra, para onde a humanidade infalivelmente
caminhava (no caso brasileiro, com a ajuda da ALN, da VAR-Palmares e do PCdoB):
o socialismo e, em seguida, o comunismo. Em contraste com o inferno
capitalista, o socialismo era tudo de bom. E nesse “tudo de bom” estava
incluído o fim da violência contra as mulheres que, entretanto, somente poderia
se tornar realidade após a revolução.
Como sabemos,
essa ideologia tradicional, ortodoxa (dominante nos anos 1960-70, focados nesta
parte de Geração D) se não morreu –
cadáveres quase nunca morrem completamente –, foi muito abalada com a queda do Muro
de Berlim (1989) e o desmoronamento da União Soviética (1991). Quando a cortina
de ferro sumiu e as fronteiras foram abertas, tornou-se evidente que o
socialismo, onde ele havia sido experimentado, tinha sido econômica, política,
ambiental e socialmente um fracasso. E aí ficou difícil manter o discurso de
uma nota só: a revolução ou nada.
Nessas novas
circunstâncias, o que fazer? (Lênin, uma vez, perguntou isso mesmo.) Para os
ideólogos da esquerda, dar uma volta completa e reconhecer o absurdo de suas
teses estava fora de cogitação. Mas, também, não era mais viável basear a ação
política apenas ou sequer principalmente nelas. Tornou-se preciso encontrar
novas bandeiras, algo que eles conseguiram em pouco tempo. Tudo o que havia
disponível no mercado foi incorporado ao ideário e ao movimentário da esquerda.
Temos problemas de poluição? Defender o ambiente passou a ser uma bandeira da
esquerda. (Não era, antes; ao contrário, o conservacionismo ambiental tinha
sido, até então, uma ideologia tida como reacionária.) A distribuição dos
rendimentos piorou? Criticar a distribuição de renda, sem condicionar a melhoria dela à derrubada do capitalismo, passou
a ser uma bandeira da esquerda. Há preconceito racial? Defender a igualdade
entre as raças passou a ser uma bandeira da esquerda. Os gays e lésbicas são
oprimidos? Defender a igualdade de gêneros passou a ser uma bandeira da
esquerda. O marido da empregada bate nela todo dia? Então a luta contra a violência
dos homens sobre as mulheres passou a ser uma bandeira da esquerda. Nada disso
tinha mais que esperar pelo socialismo. E assim, a luta de classes, ou a velha
oposição entre capitalistas e proletários, a única que mereceria a atenção da
esquerda no tempo em que a geração D tinha vinte anos, foi para o brejo.
Por fim, como
não poderia deixar de ser, a tortura dos presos políticos no tempo da ditadura
é um dos temas abordados por Sérgio Buarque. No livro, explícita ou
implicitamente, todos os personagens presos pelo regime foram torturados. Uns
mais, outros menos. Uns resistiram bravamente, sem entregar os companheiros
(mas, às vezes, desmoronando psicologicamente, como Maurício, o marido de
Renata, sobre quem falei na “Resenha muitíssimo prematura”). Outros, entregaram
tudo o que sabiam para se livrar da dor física (a exemplo de Eliane, a mulher
com quem o mesmo Maurício se envolveu, nos seus tempos de clandestinidade, já
sem ter contato com Renata). Todos, enfim, no livro, sofreram as sequelas da tortura.
Pode não ter sido assim que as coisas se passaram, na realidade, mas o provável
exagero do autor se justifica como um recurso dramático. É o que penso. De todo
modo, se a esquerda promoveu a violência, quando uma parte dela optou pela luta
armada contra a ditadura, recebeu desta um troco mais do que proporcional.
Nenhum dos lados saiu ganhando com aquilo, uma reflexão que, mais uma vez (pelo
menos, na parte que já li de Geração D),
não é de Sérgio Buarque, mas minha. Embora pareça estar no espírito de seu
relato como, provavelmente, confirmarei com a continuação da leitura.
Chego ao fim
desta segunda resenha prematura. Mas, não sem dizer que sou um leitor atento. Até
pequenas falhas, normalmente, não me passam despercebidas. Erros de Português,
por exemplo, abundam no livro comentado. São graves? Não. Há quem ache que isto
– “erros de Português” – nem existe mais, tamanha a licenciosidade cultural a
que chegamos. Na verdade, para os que se contentam com comunicações imprecisas
e mensagens truncadas, nunca existiram. Não é o meu caso, nem o de Sérgio. Além
disso, alguns personagens poderiam ter sido mais bem apresentados, quando de
sua primeira aparição. Duas ou três palavras inseridas no texto resolveriam o
problema. Isso tudo – dos descuidos idiomáticos à insuficiente descrição de
personagens – pode ser corrigido com facilidade na segunda edição que,
certamente, haverá. Geração D (e o digo
após chegar quase à metade da sua leitura) mais do que merece esses cuidados e
carinhos. Mesmo sem eles, é um livro extraordinário.