quarta-feira, 24 de junho de 2015

A cidade perdida da Bahia

Gustavo Maia Gomes

O encontro da cidade perdida por um viajante. Desenho de Brian Fawcett (Lost Trails, Lost Cities,  1953). Imagem obtida em Oleg Dyakonov: “1913-2013: Centenário da redescoberta da Cidade Perdida da Bahia”








Durante dez anos (1743-53), um grupo de bandeirantes vagou pelos sertões da Bahia em busca das lendárias Minas de Prata do Muribeca, alcunha de Robério Dias, que as teria descoberto mais de um século antes. Consta que Muribeca havia prometido ao Rei de Espanha e Portugal (era a época da União Ibérica, 1580-1640) revelar a localização das minas, em troca de um título de marquês. Como não o conseguiu, fechou a boca e morreu na prisão.

Apesar de todo o esforço, as minas jamais foram encontradas pelos bandeirantes do século 18, mas, no último ano de suas andanças, um deles, ou alguém conhecedor da expedição, escreveu carta a uma autoridade do Rio de Janeiro. Este documento – que viria a ser conhecido como Manuscrito 512 – contava a descoberta de uma cidade mais antiga que a chegada dos portugueses. Ficou esquecido durante anos até que, em 1838, foi encontrado na então Biblioteca da Corte, hoje Biblioteca Nacional.

Reproduzido no primeiro número (1839) da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a “Relação histórica de uma oculta e grande povoação antiquíssima, sem moradores, que se descobriu no ano de 1753” suscitou enorme curiosidade. O Instituto, cujo patrono era Pedro II (1825-91), ainda não entronizado, decidiu, então, investigar se o relato tinha veracidade. Na época, havia a urgência de descobrir ou inventar um passado grandioso para o Brasil, algo capaz de dar legitimidade ao país recém fundado, que ainda lutava para se afirmar como nação.

Para tanto, o Manuscrito 512, se suas afirmações fossem comprovadas, poderia ser de grande ajuda. Seu anônimo autor descreve um conjunto de edificações cujas ruínas ele teria descoberto em local imprecisamente definido. O achado tinha características de uma cidade clássica romana, com pórticos, imponentes edifícios, templos majestosos e estátuas de heróis em poses dignificantes. Algo incomparável com a pobreza arquitetônica de tudo o que se conhecia sobre o Brasil pré-cabraliano.

O cônego que terminou louco

Dois anos depois de publicada a “Relação histórica” (portanto, em 1841), o cônego Benigno José da Carvalho e Cunha (?-1852), que morava na Bahia e era sócio correspondente do IHGB, candidatou-se ou foi convidado a verificar se a tal povoação "antiquíssima", realmente, existia. Para tanto, ele precisava de financiamento. O Instituto não tinha dinheiro, mas seu patrono, sim. Encaminhado o pedido, Dom Pedro IIjá então em pleno exercício do imperial poder, prontamente o deferiu. Dois contos de reis, valor alto para a época.

O Cônego Benigno se embrenhou nas matas da Chapada Diamantina, próximo à Serra do Sincorá, onde ele imaginou que a cidade fabulosa se encontraria, mas nunca achou coisa nenhuma. Por quase uma década, andou pela região, estranhamente, gastando parte de seu dinheiro na construção de pontes e estradas. Escreveu ao Instituto umas tantas cartas com poucas informações confiáveis e muitos pedidos de mais dinheiro, como se fora um empreiteiro da era petista, até ser esquecido. Há versões de que enlouqueceu, mas sabe-se apenas que veio a morrer na cidade da Bahia, em 1852.

O fracasso da expedição de Benigno Carvalho gerou constrangimento, obrigando o Instituto Histórico e Geográfico a ser mais cauteloso em patrocinar empreitadas semelhantes. Nenhuma ação concreta (exceto publicar o material que lhe fora enviado) foi tomada pela direção do IHGB quando, por exemplo, em 1848, um desconhecido major Manoel Rodrigues de Oliveira lhe remeteu longo documento argumentando que a cidade perdida, realmente, existia, mas estava sendo procurada no lugar errado. Que ficasse perdida e esquecida, pareceu dizer o Instituto.

Esquecida, não ficaria por muito tempo. Em 1862, José de Alencar (1829-77) – já então um escritor famoso – começou a publicar, em folhetos, seu romance As Minas de Prata, apresentado como continuação de O Guarani e que tinha entre os personagens principais o notório Robério Dias. Mas Alencar, ao contrário de outros escritores indianistas como Gonçalves de Magalhães (1811-82; A Confederação dos Tamoios), Gonçalves Dias (1823-64, “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá...”), Joaquim Manoel de Macedo (1820-82, A Moreninha), não tinha ligações com o IHGB. Talvez por isso, além dos receios derivados do fracasso anterior, seu romance não tenha suscitado novas excursões em busca da cidade perdida.

A história se torna internacional: Burton e Fawcett

É, mais ou menos, no final dos anos 1860 que outro personagem extraordinário entra na nossa história. Richard Francis Burton (1821-90) foi o maior explorador e aventureiro ocidental do século 19. Mas também tinha empregos convencionais. Entre 1865 e 1869, foi cônsul da Inglaterra em Santos (SP). Viajou pelo país, como fazia sempre, e escreveu um livro, (Explorations of the Highlands of Brazil, 1869), como sempre fazia. Além do quê, traduziu para o inglês e fez publicar o Manuscrito 512.

Mais novo que Burton, também inglês, igualmente irrequieto, o coronel Percy Harrison Fawcett (1867-1925) leu o documento e ficou fascinado pela cidade perdida que - agora estamos no começo do século 20 - já se acreditava ficar bem mais a oeste, possivelmente, em território do Mato Grosso. Fawcett passou dez anos viajando pelos interiores amazônicos, ganhou fama mundial, publicou livros, mas não achou a cidade. Em compensação, inspirou a criação do personagem Indiana Jones, levado ao cinema por George Lucas e Steve Spielberg e interpretado por Harrison Ford.

Na sua última tentativa, em 1925, Fawcett embrenhou-se nas matas, na direção da Serra do Roncador, acompanhado do filho e de outro inglês. Os três desapareceram, para sempre. Devido à sua celebridade e ao fato de ele estar em missão científica oficial, muitas expedições foram organizadas para tentar resgatá-lo e a seus acompanhantes. A Wikipedia me conta, sem citar a fonte, que, nas décadas seguintes, mais de cem pessoas morreram na tentativa de saber o que havia acontecido ao coronel. Nenhuma conseguiu.

A incrível chegada de Lampião ao Mato Grosso

Tudo isso dito acima é bastante conhecido. O que vou acrescentar, agora, não é. Em minhas pesquisas recentes, deparei com a seguinte notícia, publicada no jornal A Província, do Recife, em 13 de maio de 1932 (pág. 2):

EM VEZ DE ESCLARECÊ-LO, O EXPLORADOR INGLÊS CAPITÃO A. M. MORRIS COMPLICA AINDA MAIS O JÁ MISTERIOSO CASO DO CORONEL FAWCETT

Lampião [Virgulino Ferreira da Silva, 1898-1938, o cangaceiro nordestino] teria sido visto no sertão mato grossense trazendo consigo as armas do famoso desaparecido.

(...)

Conta Morris que, estando certa vez numa povoação perdida nos confins matogrossenses salvou da morte um homem que pertencia a um grupo de outros, chegado pouco antes à localidade. Conquistou, dessa maneira, as simpatias dos rudes sertanejos.

Deste ponto em diante, deixemos ao próprio Morris a tarefa de contar sua singular aventura.

Fixei fortemente a minha atenção no homem moreno de óculos. Notei que conduzia um compasso prismático em cuja cobertura se viam as iniciais P. H. F. e um revólver cuja bolsa de couro era do tipo militar britânico. Do outro lado, uma cartucheira. Aquelas iniciais P. H. F. me bailaram na cabeça: P. H. Fawcett!

-- Desculpe, senhor, disse, quebrando o silêncio --. Ainda não tive a honra de saber o seu nome.

-- Lampião –- respondeu ele, com simplicidade, mas com uma certa ponta de orgulho.

Tive um choque. Aquele pacato tipo não era outro senão o bandido feroz cuja fama corre de um extremo ao outro do continente. Ele tinha cem mortes nas costas e, invariavelmente, cortava as orelhas dos cadáveres de suas vítimas.

Ele ficou satisfeito com minha surpresa.

-- Sim, sou eu mesmo esse homem. Peça o que quiser em recompensa por ter salvo a vida de meu irmão.

Imediatamente, excitou-se a minha imaginação. As armas são preciosidades nas florestas brasileiras. Daria o famoso bandoleiro suas armas? Eu precisava daquele revólver e daquele compasso.

-- Nunca podia imaginar –- comecei em tom cortês –- que me fosse dada tão grande honra. O seu nome é, na verdade, tão famoso em Montevidéu como em Lima. Congratulo-me de lhe ter prestado um pequeno favor.

Lampião sorriu. O padre chegou para avisar que a comida estava pronta. Enquanto comíamos, meu pensamento estava cheio de conjeturas. Teria Lampião morto o coronel Fawcett? Estariam as orelhas do coronel fazendo parte de sua coleção? Ofereci-lhe a minha bolsa de fumo. E enquanto ele enrolava o cigarro, decidi me aventurar:

-- Diga-me, senhor, como obteve esse revólver e este compasso? Eles devem ter uma história interessante.

O relato d'A Província continua. Lampião teria dado os objetos ao Capitão Morris, que deixou o local o mais rápido possível. Não há notícias do que as armas tenham sido, jamais, mostradas ao público, como provas de que Fawcett tinha, de fato, morrido. Talvez, assassinado por Lampião. De fato, a presença do cangaceiro nordestino em terras tão distantes é altamente improvável e, tanto quanto eu saiba, jamais foi registrada por outro testemunho.

Epílogo

Em 1952, os irmãos Claudio e Orlando Villas Boas, seguindo pistas contadas por índios da região onde Fawcett havia andado, encontraram corpos que eles identificaram como sendo os do coronel e seus acompanhantes. Havia, no mesmo lugar, objetos que poderiam ser dos exploradores ingleses. A prova definitiva, entretanto, não foi conseguida, pela aparente razão de que os descendentes do explorador inglês não têm permitido que seja feito o exame de DNA.


O fato é que a Cidade Perdida da Bahia nunca foi encontrada. Já não se acredita, hoje, que ela possa existir. Mas a lenda continua.