segunda-feira, 6 de maio de 2019

Opiniões sobre Manoel Neném, "o maior cantador do Nordeste"


Gustavo Maia Gomes
Tendo participado como julgador – provavelmente, no Rio de Janeiro – de festival de cantadores e repentistas nordestinos, Manuel Bandeira compôs estes versos, parte de um poema mais extenso:
Saí dali convencido
Que não sou poeta, não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação [1]
Ignoro que festival foi aquele, nem isso importa muito. Pode ter sido o de 1960, sobre o qual Théo Brandão escreveu “O cantador que faltou”, no Diário de Notícias (RJ), explicando: “Reporto-me a Manuel Floriano Ferreira, ao velho Manuel Neném, de quem Aurélio Buarque de Holanda divulgou em 1939 (...) os repentes extraordinários que causaram admiração nos meios intelectuais do Brasil”. Neném, “nascido em Bom Conselho de Papacaça, Pernambuco, mas radicado desde novo em Viçosa, Alagoas, (...) sempre se declarou viçosense”, depõe o historiador Frederico Pernambucano de Melo.
Volto a Théo Brandão:
[Manuel Neném] não era cantador como os de hoje, afeitos aos grandes auditórios de rádios e televisões, que falam linguagem correta e nunca rimam pé macho com pé fêmea. Não, Neném era um poeta rude, trabalhador agrícola que ainda hoje o é e que cometia erros imperdoáveis, cantava versos errados e sem sentido mas que, de súbito, em duas ou três estrofes, redimia-se inteiramente e alçava-se aos voos mais puros e admiráveis da poesia repentista.[2]
E, de novo, Frederico Pernambucano de Melo: “a edição de 28 de junho de 1938 da Gazeta de Alagoas (...) dava notícia da cantoria ocorrida em casa de Theo Brandão”. No centro da festa regional, prossegue, estava “o poeta e repentista Manoel Neném, nome artístico de Manoel Floriano Ferreira”. E ainda: “a frequência à casa de Brandão [em Maceió] depõe a favor da qualidade de quem era considerado ‘o melhor cantador do sertão alagoano”, como o apresenta a folha. Que diz ter o poeta versejado por três horas, fazendo louvores aos presentes, cantando a história de Lampião, improvisando uma interessante história do mundo...”[3]
Até meia noite, ouviram-se os aplausos de José Aloísio Brandão Vilela [casado com Laura Bahia, tia de Élide Bahia, esposa de Théo], de Eloy e de Manoel Brandão, do padre Diégues Neto, de Jacques Azevedo, de Nominando Maia Gomes [meu avô paterno; sua mulher era tia de Élide], de Freitas Cavalcanti, de Humberto Bastos [economista e jornalista, fez carreira no Rio de Janeiro], de Aurélio Buarque de Holanda [dicionarista], de Olympio de Almeida [sogro de Théo], de Joaquim e de Manuel Diégues Jr. [sociólogo, pai do cineasta e membro da Academia Brasileira de Letras Cacá Diégues][4]
Trabalhador agrícola, “poeta rude”, Manoel Neném era analfabeto. Expressou isso, uma vez, de forma a não deixar dúvidas:
Sou cantador atrasado
E meus erros ninguém note
Eu só canto porque Deus
Foi quem me deu este dote
Mas eu só conheço um O
Devido à boca do pote [5]
Gostava de cantar, certamente, mais do que do trabalho na terra:
A viola é minha cruz.
Tou crucificado nela
Enquanto eu vida tive
Eu não deixo o braço dela
Eu sou dela e ela é minha
Ela é minha e eu sou dela [6]
“Qual será, no meio de tantos cantadores o maior de todos”, perguntava, em 1947, José Aloísio Brandão Vilela. E respondia: “Manoel Neném é o maior cantador do Nordeste”. Opinião de quem entendia do assunto. “Basta se fazer um estudo comparativo entre a sua poesia e a dos outros cantadores para se notar a enorme diferença”, dizia o folclorista de Viçosa.
Os seus repentes são originais, as suas imagens são deslumbrantes, a sua veia poética é inesgotável. E além de tudo é o poeta matuto que mais se volta para os motivos regionais. Suas imagens são tiradas do ambiente em que vive, suas comparações palpitam de um forte e delicioso nativismo. Há momentos em sua cantoria em que ele se transfigura e atinge, pela naturalidade e pela expressão, os elevados domínios da poesia pura.[7]
As cantorias de Manoel Neném, como toda boa literatura, não importa se oral ou escrita, exprimem de forma bela, envolvente, emocionante, a realidade de seu meio. Como nestes versos, recolhidos por José Aloísio Brandão Vilela:
Criei-me sem pai nem mãe
No meio deste sertão
Andando de déo em déo
Fui criado, meu patrão,
Com o sol e com a chuva
Como as ramas do algodão [8]
E, finalmente, um último depoimento, o de Aleixo Leite Filho, publicado em 1983: “Manoel Neném, apesar dos noventa e três anos e de paralisia recente que o prende à cama, continua lúcido e capaz de improvisar, como o fez recentemente, glosando o mote ‘Adeus até outro dia’ com que um companheiro mais moço se despedia dele”.[9]
Eis o improviso:
Estou quase de ida,
Pra ir pra eternidade
Já estou sentindo a saudade
Da hora da despedida;
É breve minha partida,
E parto sem companhia;
Eu vou fazer poesia
Pra os anjos celestiais
E você não me vê mais
Adeus até outro dia [10]
Manoel Floriano Ferreira, o célebre Manoel Neném de Viçosa deve ter morrido pouco depois disso. Desde meados do século XX, ele, que havia nascido em 1894, já mostrava sinais de que os anos não lhe haviam passado sem cobrar seu preço.


[1] Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro, 25ª ed., 1993, págs. 256-57.
[2] Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960. A citação anterior é de Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[3] Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[4] Frederico Pernambucano de Melo, Apagando o lampião: Vida e morte do rei do cangaço. Global, Rio de Janeiro, 2019.
[5] Cf. Manuel Diégues Jr. “Poetas que nascem feitos: Os cantadores do Nordeste”. Américas, 1958, em http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cdu&pagfis=10395
[6] Cf. Théo Brandão, “O cantador que faltou”, Diário de Notícias (RJ), 1/5/1960.
[7] “A vida dos cantadores” (publicado originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982, pág. 39.
[8] Cf. “A vida dos cantadores” (publicado originalmente em 1947), em José Aloísio Brandão Vilela, Coletânea de assuntos folclóricos, Maceió, Museu Théo Brandão, 1982, pág. 39.
[9] Aleixo Leite Filho, “O glosador genuíno”, Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf Acesso em 6/5/2019.
[10] Cf. Aleixo Leite Filho, “O glosador genuíno”, Boletim da Comissão Catarinense de Folclore, 1983, nos 35-36, em http://hemeroteca.ciasc.sc.gov.br/Boletim%20de%20Folclore/boletim%20folclore/BFC1983DEZ035-036.pdf Acesso em 6/5/2019.


Um comentário:

  1. Parabéns pela homenagem e pelo tema. Manoel de Neném, Pinto do Monteiro, os irmãos Otacílio, Lourival Patriota; o cego Aderaldo, Romano da Mãe D'Água; Ignácio da Catigueira e alguns outros viveram o Mundo Encantado da Poesia Nordestina. Pena, que estejam tão esquecidos.

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