GUSTAVO MAIA GOMES
Fui porque se tratava de evento em
homenagem a um amigo falecido. Infelizmente, era uma missa. Não frequento essas
cerimônias medievais (assim como não iria ver padres assar gente ou assediar
meninos, outros de seus hábitos antigos), mas, até ontem, eu admitia ir àquelas
em memória de pessoas muito queridas. Só até ontem. Não mais.
Peço desculpas aos amigos,
conhecidos e familiares que venham a morrer antes de mim, mas, em face dessa
resolução, não irei às suas missas de corpo presente, ausente, sete dias,
trinta dias, um ano, duas décadas... Em compensação, os sobreviventes estão
dispensados de ir às minhas, pois estas, de acordo com instruções expressas que
deixei escritas e assinadas, não existirão.
Uma gota d’água fez o pote transbordar:
a agressão moral que senti ao assistir o espetáculo degradante de uma missa.
(No caso, carismática, imagine.) Não quero insultar ninguém, apenas constatar fatos.
Degradar quer dizer rebaixar e, na missa, pouca coisa ouvi, além de um discurso
de rebaixamento humano.
“Somos miseráveis pecadores”. “Nada
valemos”. Nossa existência é uma desgraça, mas, não obstante isso, temos de
estar eternamente gratos a quem nos criou, dando-nos, portanto, a graça de ter
uma vida desgraçada. E, se quisermos passar desta vida ruim, mas certa, para
uma boa, mas duvidosa, só nos resta suplicar para que Deus tenha piedade de
nós. Ouvi isso e muito mais, numa torrente de frases feitas, constantemente
repetidas.
Pois bem, se eles querem se
degradar, que o façam, mas não na minha presença. Foi, sobretudo, por isso que
decidi não mais frequentar missas, nem mesmo aquelas em memória de pessoas
queridas. De espetáculos degradantes, estou farto. Daqui por diante, só entro
em igrejas como turista ou participante de eventos culturais – um concerto em
sol maior, por exemplo. Até canto gregoriano eu topo, em nome do prazer
estético. Missas, muito obrigado.
ANTIGO OU
MODERNO?
Não é apenas no discurso que os
padres agridem a dignidade humana, nem são somente eles que o fazem, e nem é
esse o único aspecto intolerável das missas. Na verdade, porque as religiões se
alimentam do que há de pior nas pessoas (medo, ignorância, fé, estupidez,
fanatismo), a degradação está embutida em todos os aspectos de todas as
cerimônias de todas as religiões. Mas não tratarei do tema em geral. Apenas quero
destacar duas ou três coisas que presenciei ontem.
Uma delas foi a exótica combinação
de elementos antigos e modernos feita pelos católicos carismáticos. Antigos:
não é um padre sozinho a comandar o espetáculo, mas um verdadeiro cortejo que, no
início e no final da missa, sai do altar e faz uma espécie de procissão dentro
da igreja, soltando fumaça, enquanto os fieis se atropelam para tocar um objeto
mágico carregado pela comissão de frente. Modernos: cantorias mil; palco cheio
de gente; axilas expostas, minuto sim, minuto não; o público aplaudindo cada vez
que é mandado; todo mundo se abraçando, numa falsa solidariedade a ser
esquecida no instante seguinte.
A combinação do antigo com o moderno
não deixa de ser uma salada russa, mas faz sentido, quando se tem em conta seu objetivo:
recuperar uma parcela do mercado religioso, antes monopólio dos católicos, mas que
hoje lhes escorre das mãos, gradualmente conquistado pelos evangélicos. Seja
dito que os padres e pastores não brigam por ninharias: o faturamento conjunto
das igrejas no Brasil se mede na casa dos muitos bilhões de reais por ano. E, o
que é melhor, livres de impostos.
PROFUNDEZAS
DO INCONSCIENTE
Por que o elemento antigo? Porque
impressiona. Os carismáticos sabem que, nas profundezas do inconsciente, as
pessoas têm apego aos rituais místicos, carregados de símbolos indecifráveis,
povoados de gente com roupas brancas fingindo apaziguar espíritos terríveis. Isso
não é de hoje. Quem ler as cartas do padre Manuel da Nóbrega, mandadas do
Brasil para Portugal ainda no século XVI, vai saber que uma das formas de os
jesuítas impressionarem os índios era juntar um punhado de padres e sair pelas
ruas vestindo batinas, carregando estátuas, empunhando velas, cantando cânticos
em latim e fazendo discursos incompreensíveis.
Mas, no mundo de hoje, apelar
apenas para os símbolos do passado não seria suficiente. Afinal, os evangélicos
estão bombando na praça, em parte, por terem inventado uma coreografia
inteiramente nova e movimentada para suas próprias cerimônias degradantes. E aí
os católicos antigo-modernos lhes imitam, fazendo seus fieis cantarem
ininterruptamente; mandando-os levantar os braços a torto e a direito (com as
consequências odoríficas que se podem imaginar); estimulando aplausos entusiásticos,
como se aquilo tudo fosse um grande show do Chiclete com Banana. A combinação
exótica deve estar surtindo efeito, pois a igreja estava lotada, num dia que
não era nem domingo, nem feriado.
Os carismáticos só não sabem
ainda arrancar dinheiro dos fieis com a mesma competência dos seus rivais
evangélicos. A coleta das contribuições é tímida, envergonhada, meia boca. Tal
tibieza é resquício da milenar dubiedade católica em relação aos bens materiais:
ao mesmo tempo em que acumulava riquezas estonteantes, a Igreja de Roma nunca
deixou de associar o dinheiro ao pecado e à danação eterna. Já os evangélicos,
herdeiros da Reforma, não têm qualquer escrúpulo a respeito: para eles, quanto
mais grana, melhor. Sem qualquer necessidade de arranjar desculpas para meter a
mão na bufunfa.
FUMACINHA
Três outras ocorrências da missa
carismática merecedoras de registro são a volta do fumacê, a exibição da
carteira de identidade pelo senhor sentado à minha frente, e o momento em que o
padre manda a plateia fazer seus pedidos a Deus.
Todos de branco, menos um, o
cortejo de padres e outros embatinados circula duas vezes pela igreja, em
procissão. A primeira é na abertura do espetáculo degradante. Oito ou dez
componentes carregam cruzes, brasões, lanternas e graves problemas mentais,
perceptíveis nas suas feições tempestuosas.
Essa primeira procissão não tem
fumaça. A segunda, já próxima ao final da missa, tem até demais, como se o
arcebispo tivesse mandado dedetizar o recinto no momento mesmo em que a igreja
estava lotada. Perguntado, o vizinho me informa que é incenso, excluindo a
possibilidade de tratar-se de outra coisa ainda mais estimulante. A fumaça,
suponho, afugenta os maus e atrai os bons fantasmas. Se for assim, vá lá, embora
fosse possível conseguir o mesmo resultado sem transformar a audiência em uma
multidão de fumantes passivos.
PEDIDO
O homem sentado à minha frente –
desacompanhado, de meia idade, aspecto pobre, pele escura – participa
entusiasticamente de cada ato. Quando o padre sinaliza ser hora de levantar os
braços, ele não só obedece como se supera, traçando semicírculos com as mãos e
fazendo gestos como os de quem abana um fogão a lenha. Tudo isso enquanto segura,
com a mão direita, uma pasta contendo papeis; e, com a esquerda, uma carteira
de identidade, certamente, a dele.
Foi minha mulher quem matou a charada.
A pasta devia conter as cartas das lojas cobrando prestações vencidas; a
carteira de identidade era para assegurar que o poder celestial não se
enganasse quanto ao nome e CPF do solicitante. O homem tinha ido à igreja para
saldar seus papagaios sem despender um centavo. Porque, com certeza, um centavo
ele não tinha, embora tenha deixado vários reais de oferta para o padre.
Quando já havia passado muito
mais tempo que o tolerável, desde o início da missa, o padre convidou os
crentes a fazer seus pedidos às autoridades celestiais. O fiel ao meu lado, um homem
forte e alto, que bem poderia se chamar Zé Grande, estava impaciente e rezou para
que a missa terminasse em meia hora. Eu, mais otimista, cravei vinte minutos. Perdi
por nove.
– Deu Zé Grande.
(Alto do Céu, Recife, 12 out 2012)
Impagável, nunca fui a uma missa carismática, mas assiti através de sua descrição Gustavo.
ResponderExcluirÉ ainda pior do que a descrição, Bernadete. Tenha certeza!
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