quinta-feira, 15 de junho de 2017

O trem para Viçosa, Alagoas, segundo Théo Brandão (1950)

Gustavo Maia Gomes

Escrevi um livro a que dei o título O trem para Branquinha. (Já está na editora, com previsão de publicação até o fim deste ano.) Nele, como seria de esperar, o trem desempenha papel importante, não apenas pelas transformações socioeconômicas que proporcionou à região canavieiro-açucareira do Nordeste, entre os anos de 1858 e 1950, mas também pelo seu valor simbólico, entranhado em minhas recordações pessoais. 

Na viagem entre o Recife,  Branquinha (AL) e Maceió, o trem da Great Western, depois Rede Ferroviária do Nordeste parava em inúmeras estações. Cito algumas delas: Boa Viagem, Cabo, Pontezinha, Escada, Ribeirão, Catende, Palmares -- em Pernambuco --; Joaquim Gomes, São José da Laje, Nicho, Murici, Fernão Velho, Bebedouro, em Alagoas. Nas estações, e dentro dos vagões, enquanto parados, havia os vendedores disso e daquilo. Cada estação tinha seu produto ou produtos característicos: alfenins, roletes de cana, cajus, cavacos, laranjas seletas e tantos outros.

Começando 40 anos antes de mim, Théo Brandão (1907-81) o famoso folclorista alagoano, também andou nos mesmos trens da Great Western, tipicamente, fazendo o percurso entre sua cidade natal (Viçosa, AL) e Maceió. Descobri delicioso artigo dele, publicado em 1950 no Diário de Pernambuco, sobre as pessoas oferecendo alimentos aos passageiros. É o que transcrevo a seguir.

Os pregões de trem
Théo Brandão

Já se foi o tempo em que uma viagem de trem era para qualquer cidadão deste velho mundo um acontecimento na vida.
As viagens para as cidadezinhas do então ramal de Viçosa ou Pernambuco, mais afastadas da capital, eram preparadas com meses de antecedência. Especialmente, quando se ia passar “tempos” em Maceió e Recife. Preparavam-se as “munições de boca”: as cestas de vime recheadas de perus e galinhas assadas, pão de ló torrado, as fritadas de camarão ou de galinha, os sequilhos ou as broas de goma, as garrafas, ou melhor, as “quartinhas” com água fresca, com o que se haveria de encher o estômago nas espichadas horas da travessia.
Ainda vinte anos atrás, Jorge de Lima fixava no seu poema “GWBR” a incômoda, mas certamente pitoresca viagem pelos trens da Great Western.
Contudo, ainda muito de pitoresco e de tradicional há para o folclorista anotar numa viagem pela velha estrada. Por exemplo, os pregões de trem, dos quais Jorge de Lima só muito por alto falou, os anúncios de moleques magros e meninos amarelos, de mulheres esqueléticas e de velhos trôpegos, cantados à beira das estações ou ao longo dos carros, mercando para os que não quiseram ou puderam trazer as “munições de boca”.
Para quem vinha de Viçosa, naqueles velhos tempos, na época, sobretudo, de verão, e que tinham saído da então Princesa das Matas com o estômago confortado pelo bom café com leite, pelo pão da Padaria de Seu Joca generosamente untado com a saborosa Esbense, somente em Bittencourt começava a dar sinais de apetite, quando apareciam as cestas de folhas de palmeira entrançadas, repletas de maravilhosos cajus ou belas jacas moles de bago roxo, ou pacotinhos de castanhas assadas:
– Oie a jaca mole!
– Oie o caju doce, quem qué caju, quem qué chupá caju?
– Oie a castanha assada, castanha assada, um tustão o pacote.
Mas, era e é ainda inegavelmente em Lourenço de Albuquerque e Rio Largo – pontos de demora do comboio à espera do de Pernambuco, onde os pregões invadem os carros, entram por nossos ouvidos e atingem o mais fundo de nossas vísceras, principalmente quando estas vísceras andam de dieta efetiva e não mais poderão se deliciar com o encanto das guloseimas que os pregões proclamam.
O homem do cavaco chinês – estranha massa de farinha de trigo, parece que feita exclusivamente para aguçar a fome – com um baú cilíndrico às costas e a agitar o característico triângulo numa inconsciente aplicação prática da ação do som sobre a secreção salivar vibrava nossos tímpano os e espremia nossas glândulas salivares enquanto anunciava:
– Oie o cavaquinho chinês.
– Oie o pacotinho de cavaco, novinho na hora...
E, após ele, sucediam-se os pregoeiros. Um anuncia bananas:
– Ei, madurinha, a banana...
– Oie o rolete de cana,
– De cana caiana,
– Oie o rolete...
Aqui, o amendoim torrado, o velho midubim querido por adultos e crianças:
–Vamos acabá o midubim torrado, vamos acabá...
Ali, exposto à vista dos fregueses e das moscas, um prato com os tradicionais suspiros, broas e pães de ló, naturalmente, sem mais aqueles coloridos enfeites de papelotes de seda recortados, que eram 30 anos atrás uma arte desenvolvida e que a confeitaria moderna destruiu de uma vez.
– Olha a broa, o suspiro e o pan de ló! ...
Eram os pregões de pão – os pães doces feitos nas padarias de Rio Largo, ainda quentes de forno e reluzentes como o verniz açucarado com que eram e são vendidos o grosso dos pregões.
– Pão doce, dez tões.
– Dez tões, tá chegando quentinho... Olha aqui o novinho.
– Dez tões, chega tá se derretendo.
E eram mesmo quentinhos, e tinham as formas pitorescas de jacarés, de cavalos, etc.
Não ouvi, contudo, serem apregoados os tarecos – tarecos que eram vendidos a tostão o pacotinho e com os quais sonhava mais que com a própria viagem, naqueles tempos em que com um tostão se podia comprar alguma coisa.
Por fim, já em Fernão Velho, ao descortinar o panorama maravilhoso da Mundaú, vinham os pratos de pitus vermelho-carmesim, barbados pitus que justificaram e certamente ainda justificam muitos incômodos dos que vinham a Maceió e que se deliciavam não só com a comezaina de tão saborosos cavaleiros de Netuno quanto com os acepipes não menos deleitosos das cozinhas de Vênus.
– Olha o pitu, olha o pit-u...

(Diário de Pernambuco, 10/9/1950, pág. 1, segunda seção.)

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