terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Facetas de um gênio. (Gilberto Freyre. Quem mais?)


Gustavo Maia Gomes


Estou lendo, pela primeira vez, Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre. Publicado, originalmente, em 1957, deu continuidade ao plano do autor, concebido ainda nos anos 1930, de escrever uma obra em quatro volumes com a história da sociedade patriarcal brasileira.

Casa Grande e Senzala (1933) tornou-se o mais conhecido desses livros; Sobrados e Mucambos (1936) talvez seja o melhor (Era o favorito do autor, como me disse sua filha, Sonia Freyre Pimentel); Ordem e Progresso foi o último. Gilberto jamais escreveu o projetado quarto volume Jazigos e Covas Rasas. Por um lado, foi uma pena; por outro, fica o consolo de que ele nunca parou de nos presentear com preciosidades literárias.

"Ordem e Progresso" é um livro chato de ler. Seu autor não tem pena de nós, leitores. Escreve capítulos longuíssimos (aliás, isso acontece ainda mais nos dois outros livros citados), sem abrir uma só seção que nos dê fôlego e nos facilite compreender melhor seu raciocínio. Mas, um livro chato de Gilberto Freyre é melhor do que a obra prima de quase qualquer outro autor. O cara foi, mesmo, um gênio. Pena que só o descobri tão tarde.

Lembro-me, antes de voltar a Gilberto, de duas observações repetidamente feitas por outro autor extraordinário, uma inteligência ambulante (atenção, também pernambucano!), Nelson Rodrigues. Sobre as escarradeiras. As escarradeiras (cheguei a alcançá-las) eram uma instituição nacional. Não podia haver residência respeitável sem escarradeiras espalhadas pelos quatro cantos. Repartição pública sem escarradeira, Ave Maria!, nem pensar. E, no entanto, dizia Nelson, você percorre a literatura nacional de cabo a rabo, a começar por Machado de Assis, e não encontra ali uma só escarradeira.

Outra obsessão de Nelson eram os dentes de ouro. Sobre eles, chegou a escrever uma peça. E, no entanto (não sei se ele disse isso), é difícil encontrar um dente de ouro perdido no meio de todos os romances brasileiros. Um ali, outro acolá, pode ser. No teatro, nem se fala. Nelson Rodrigues supriu essa lacuna. O Boca de Ouro (que virou filme) é uma peça sua. Se é boa ou ruim, não me interessa discutir, agora. Mas que está cheia de dentes de ouro, está.

Pois, também há dentes de ouro em Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre. Nesse livro, ele se concentra no período entre o 15 de novembro de 1889 e os primeiros anos 1900. Tinha havido a Guerra do Paraguai, que aumentara o prestígio dos militares. A Lei Áurea. Os debates públicos que prepararam a República. E havia os dentes de ouro. Por toda parte, as cidades brasileiras estavam cheias de gente com dentes de ouro. Na página 151 da 6ª edição (2004) de Ordem e Progresso está escrito:

Uma das elegâncias, quer de soldados, quer de paisanos, que vindo da parte mais humilde da população, atingissem os primeiros postos de importância nas suas atividades ou profissões, foi, na época, a do dente de ouro. Raro o cônego sem seu dente de ouro. Rara, também, sem dente de ouro, a mulata ou a mulher de cor de algum sucesso como mulher ou de algum prestígio como quitandeira ou quituteira. Raro o indivíduo de cor, bacharel em direito, alferes do Exército, pequeno negociante – em ascensão social, necessitado de afirmar-se – sem dente de ouro. (Gilberto Freyre)

E por aí vai. Uma delícia.

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