Gustavo Maia Gomes
Aconteceu
que a Congregação concluiu o inquérito sobre Severino Patacho, um beato do
Sertão paraibano, morto há 50 anos com fama de devoto, casto, meio afrescalhado.
Tudo o que deve ser um candidato à santidade. Não deu outra: em 12 de abril de
mil novecentos e alguma coisa, Patacho foi declarado santo.
Em
Piancó, houve muitas festividades; no Céu, manifestações de espanto. Todos se
perguntavam quem era Severino Patacho. Não morava ali; se morasse, o Google
saberia. Nem no Purgatório, há muito tempo em reforma. Finalmente, veio a notícia:
o novo santo tinha ido para o Inferno.
São
Pedro estremeceu. Se a informação vazasse, os big brothers iriam comentá-la e são
Severino terminaria posando nu para a Playboy. A propaganda negativa
abalaria as finanças da Igreja, que já andavam ruins. Não se tratava de um
probleminha, tipo a reeleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado. Era
um problemão.
Fora
são Pedro, pouca gente sabia quanto custava manter o Céu em funcionamento, com
aqueles homens e mulheres rezando o dia todo no ar condicionado. Ninguém ali trabalhava.
Desenvolvimento local, endógeno e sustentável, necas de merrecas. O dinheiro vinha
do Banco Vaticano, parando nas Ilhas Jersey, para higienização. Mas o banco, depois
do desfalque, ia mal das pernas. Não se sabia quanto tempo ele ainda iria durar.
Seguro
de que a gravidade do assunto justificaria uma audiência com Deus, Pedro foi
até o gabinete do Todo-Poderoso. Encontrou a porta fechada.
A AUDIÊNCIA
–
“O homem deu ordem de não ser interrompido”, disse o porteiro, cearense. (Arranjara
o emprego na seca de 1932 e foi ficando.) “Está jogando xadrez com o Putin”.
–
“E ele ainda não aprendeu que ninguém ganha dos russos nesse jogo?”, resmungou
Pedro, contrariado.
Mas
tanto insistiu que terminou sendo recebido.
–
“Deus, seus funcionários na Terra criaram a maior encrenca prá nós...”
Não
conseguiu terminar a frase.
–
Já lhe disse para não me chamar desse nome. Existem mais de cinco mil deuses.
Quem quer essa companhia? Eu não; eu sou único, o Bam Bam Bam.
–
Mas, Senhor, então como devo chamá-lo?
–
Zé Aécio.
–
Esse homem é muito rico. Tem um sobrinho que construiu a maior packing house do
mundo. Não vai se incomodar?
–
Ele não tem de saber. Vai que um dia preciso de internação hospitalar...
–
“O problema é o seguinte”, disse Pedro: “fizeram Severino Patacho virar santo”.
–
E quem diabos é esse Severino Patacho, Pedro? Acha mesmo que eu sei tudo, é?
–
Vou ler o que saiu na Internet, continuou o gerente do Céu: “Severino Patacho é
um beato do Sertão paraibano, morto há 50 anos com fama de devoto, casto, meio
afrescalhado. Tudo o que deve ser um candidato à santidade.”
–
“Sendo assim, não vejo nenhum problema em ele virar santo”, retrucou Zé Aécio.
–
“Mas, Senhor”, disse Pedro, “a fama era uma, a realidade, outra. Patacho está
no Inferno. De casto, ele não tinha nada. Era um comedorzinho voraz, com forte
preferência por cabras. No Sertão, é o que não falta.”
–
Não espalhe isso, Pedro, mas uma cabrinha, de vez em quando... Não posso culpar
esse frade.
–
Frade, não, beato. Pense no estrago que essa informação pode causar. O que
vamos fazer?
Durante
meio minuto, Zé Aécio permaneceu mudo. Terminou falando:
–
Vamos despecadizar a sacanagem. Assim, trazemos o Patacho para o Céu e o
problema está resolvido.
A VINGANÇA
Pedro
ficou arrasado, mas não disse nada. Como é que Deus, com aquela fama toda,
podia ignorar as coisas mais básicas? Se sacanagem deixasse de ser pecado, o
Céu iria explodir de tanta gente. E quem iria pagar as despesas, se nem da pequenina
população de donzelos o Banco Vaticano estava mais dando conta?
Mas
o pior não era isso – e aí Pedro não pôde deixar de pensar em si mesmo. Há dois
milênios ele vivia espreitando o Inferno, secretamente desejando aquelas
mulheres lindas, sem jamais ter coragem de abordá-las. Toda a vida ouvira que “isso
é pecado; naquilo, nem pensar”. Dominado pelo medo do castigo, conteve-se.
–
“Dois mil e treze anos no jejum”, sussurrou, “e agora me vem Zé Aécio dizer que
comer cabras podia. Essa é muito boa.”
Em
ato de pura vingança, Pedro vendeu a história para o Wikileaks.
A facilidade de jogar com as palavras e o humor refinado e sarcástico é marca registrada sua. O texto é iconoclasta e delicioso. Ri muito.
ResponderExcluirIvan: Obrigado pela referência elogiosa. Se ela for verdadeira, se explica, em parte, pelo fato de que temos gurus literários em comum: Voltaire, Russell, Millor e outros. Incluo entre os meus, além destes, Flaubert, Churchill, Kafka, Machado, o Hemingway de The Old Man and the Sea, Carlos Lacerda... Aproveitando o mote, vou escrever uma nota mais longa sobre isso.
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