domingo, 27 de janeiro de 2013

Um Santo no Inferno


Gustavo Maia Gomes

Aconteceu que a Congregação concluiu o inquérito sobre Severino Patacho, um beato do Sertão paraibano, morto há 50 anos com fama de devoto, casto, meio afrescalhado. Tudo o que deve ser um candidato à santidade. Não deu outra: em 12 de abril de mil novecentos e alguma coisa, Patacho foi declarado santo.
Em Piancó, houve muitas festividades; no Céu, manifestações de espanto. Todos se perguntavam quem era Severino Patacho. Não morava ali; se morasse, o Google saberia. Nem no Purgatório, há muito tempo em reforma. Finalmente, veio a notícia: o novo santo tinha ido para o Inferno.
São Pedro estremeceu. Se a informação vazasse, os big brothers iriam comentá-la e são Severino terminaria posando nu para a Playboy. A propaganda negativa abalaria as finanças da Igreja, que já andavam ruins. Não se tratava de um probleminha, tipo a reeleição de Renan Calheiros para a presidência do Senado. Era um problemão.
Fora são Pedro, pouca gente sabia quanto custava manter o Céu em funcionamento, com aqueles homens e mulheres rezando o dia todo no ar condicionado. Ninguém ali trabalhava. Desenvolvimento local, endógeno e sustentável, necas de merrecas. O dinheiro vinha do Banco Vaticano, parando nas Ilhas Jersey, para higienização. Mas o banco, depois do desfalque, ia mal das pernas. Não se sabia quanto tempo ele ainda iria durar.
Seguro de que a gravidade do assunto justificaria uma audiência com Deus, Pedro foi até o gabinete do Todo-Poderoso. Encontrou a porta fechada.
A AUDIÊNCIA
– “O homem deu ordem de não ser interrompido”, disse o porteiro, cearense. (Arranjara o emprego na seca de 1932 e foi ficando.) “Está jogando xadrez com o Putin”.
– “E ele ainda não aprendeu que ninguém ganha dos russos nesse jogo?”, resmungou Pedro, contrariado.
Mas tanto insistiu que terminou sendo recebido.
– “Deus, seus funcionários na Terra criaram a maior encrenca prá nós...”
Não conseguiu terminar a frase.
– Já lhe disse para não me chamar desse nome. Existem mais de cinco mil deuses. Quem quer essa companhia? Eu não; eu sou único, o Bam Bam Bam.
– Mas, Senhor, então como devo chamá-lo?
– Zé Aécio.
– Esse homem é muito rico. Tem um sobrinho que construiu a maior packing house do mundo. Não vai se incomodar?
– Ele não tem de saber. Vai que um dia preciso de internação hospitalar...
– “O problema é o seguinte”, disse Pedro: “fizeram Severino Patacho virar santo”.
– E quem diabos é esse Severino Patacho, Pedro? Acha mesmo que eu sei tudo, é?
– Vou ler o que saiu na Internet, continuou o gerente do Céu: “Severino Patacho é um beato do Sertão paraibano, morto há 50 anos com fama de devoto, casto, meio afrescalhado. Tudo o que deve ser um candidato à santidade.”
– “Sendo assim, não vejo nenhum problema em ele virar santo”, retrucou Zé Aécio.
– “Mas, Senhor”, disse Pedro, “a fama era uma, a realidade, outra. Patacho está no Inferno. De casto, ele não tinha nada. Era um comedorzinho voraz, com forte preferência por cabras. No Sertão, é o que não falta.”
– Não espalhe isso, Pedro, mas uma cabrinha, de vez em quando... Não posso culpar esse frade.
– Frade, não, beato. Pense no estrago que essa informação pode causar. O que vamos fazer?
Durante meio minuto, Zé Aécio permaneceu mudo. Terminou falando:
– Vamos despecadizar a sacanagem. Assim, trazemos o Patacho para o Céu e o problema está resolvido.
A VINGANÇA
Pedro ficou arrasado, mas não disse nada. Como é que Deus, com aquela fama toda, podia ignorar as coisas mais básicas? Se sacanagem deixasse de ser pecado, o Céu iria explodir de tanta gente. E quem iria pagar as despesas, se nem da pequenina população de donzelos o Banco Vaticano estava mais dando conta?
Mas o pior não era isso – e aí Pedro não pôde deixar de pensar em si mesmo. Há dois milênios ele vivia espreitando o Inferno, secretamente desejando aquelas mulheres lindas, sem jamais ter coragem de abordá-las. Toda a vida ouvira que “isso é pecado; naquilo, nem pensar”. Dominado pelo medo do castigo, conteve-se.
– “Dois mil e treze anos no jejum”, sussurrou, “e agora me vem Zé Aécio dizer que comer cabras podia. Essa é muito boa.”
Em ato de pura vingança, Pedro vendeu a história para o Wikileaks.

2 comentários:

  1. A facilidade de jogar com as palavras e o humor refinado e sarcástico é marca registrada sua. O texto é iconoclasta e delicioso. Ri muito.

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    1. Ivan: Obrigado pela referência elogiosa. Se ela for verdadeira, se explica, em parte, pelo fato de que temos gurus literários em comum: Voltaire, Russell, Millor e outros. Incluo entre os meus, além destes, Flaubert, Churchill, Kafka, Machado, o Hemingway de The Old Man and the Sea, Carlos Lacerda... Aproveitando o mote, vou escrever uma nota mais longa sobre isso.

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