terça-feira, 24 de abril de 2018

Seria a Usina Uruba, realmente, azarada?

A Usina Uruba (Atalaia, AL, c. 1936) vista de um morro
próximo. (Foto do acervo de Maria Stella Pedrosa.)



Gustavo Maia Gomes
(24/4/2018)


A usina de açúcar Uruba (Atalaia, AL) pertencia à família Cansanção quando foi comprada, em 1925, por meu avô materno Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa (1889-1936), em sociedade com seus irmãos Antônio Leonardo e Maria Alice. Os três, assim como a mãe deles (Maria Margarida Kuhn Pedrosa, viúva desde 1906) vinham de Santa Rita, PB, onde haviam sido donos do Engenho Velho, depois usina Pedrosa. Já eram casados com Olga Dias Cardoso, Amélia Calmon e José Elpídio Gondim, respectivamente.

Montada por meu avô, a Usina Pedrosa ficava às margens do Rio Paraíba do Norte, em terras que, frequentemente, eram alagadas pelas enchentes. Nessas ocasiões (a cheia de 1924 ficou célebre), toda a safra de canas podia ser perdida, impondo grandes prejuízos ao negócio. Era um problema de difícil solução, pois não havia outras fazendas mais secas nas redondezas que pudessem ser adquiridas para diminuir o impacto das chuvas excessivas e aumentar a produção nos anos normais.

Nessas condições, a solução foi vender as terras e a fábrica na Paraíba e encontrar uma usina que pudesse ser adquirida em Pernambuco ou Alagoas. Essa história está contada nas inéditas Memórias de Heloisa Pedrosa Resende (1916-2007), filha de Manoel Sebastião. Depois de muito viajar pelos dois estados, meu avô, finalmente, se fixou na Uruba, que tinha produção muito maior do que a pequena usina Pedrosa de Santa Rita, Paraíba. (Esta última, vendida a Flaviano Ribeiro Coutinho, passou a se denominar Santana; ainda hoje existe, com o nome de Agroval.)

Havia um problema com a Uruba, entretanto, relata Heloisa Pedrosa Resende: “Era uma usina grande, a quarta [maior] do Estado de Alagoas, porém tinha fama de ter uma ‘caveira de burro’ enterrada, quer dizer, todos os seus donos anteriores tinham fracassado”. Manoel, contudo, não se deixou intimidar pela má reputação e, nos onze anos seguintes (até sua morte prematura, aos 47 anos de idade) fez a usina funcionar direito.

Foi uma decisão corajosa, pois os mistérios sobre aquele lugar vinham de longe. Ao descrever o imaginário alagoano, em 1944 (mas, usando anotações antigas de Theo Brandão), Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), menciona que os mitos de “lobisomen, mula-de-padre, fogo-corredor, pai-do-mato (...) correm paralelos aos mitos secundários, coloridos pela imaginação local – cachorra de Palmoida, bicho da usina Uruba, o buraco-feito, o anjo-corredor e os entes do ciclo da angústia infantil, o papa-figo, o homem-do-surrão, o galafoice”. (*)

Além desse mito (que devia ter uma razão de ser), no momento em que meu avô acertava a compra da usina Uruba, havia fatos concretos e recentes a considerar. Nenhum deles era de bom agouro. Em 14 de maio de 1921, por exemplo, o Jornal do Recife havia dado a seguinte notícia (pág. 3):

O jornaleiro Manoel Jacinto, quando trabalhava na usina Uruba, município de Atalaia, foi apanhado por um trem de cana, recebendo numerosos ferimentos e ficando com a perna esquerda completamente estragada. O referido jornaleiro veio para esta capital [Maceió], onde se recolheu ao Hospital São Vicente.

Um ano e cinco meses depois, o Diario de Pernambuco (18/10/1922, pág. 4) informava:

Chegaram a esta capital [Maceió] os dolorosos pormenores da horrível explosão de uma das caldeiras da usina Uruba, a qual ocorreu em 11 do fluente (sic). Foram transportados para esta cidade e internados, como pensionistas na Santa Casa de Misericórdia, os seguintes feridos: Pedro Gomes, José Tertuliano, Francisco Valentim e Hildebrando Paulino de Oliveira. Os três primeiros faleceram, sendo grave o estado do último.

Dois dias depois, notícias de outro acidente sério apareciam no mesmo Diario de Pernambuco (20/10/1922, pág. 4):

Na usina Uruba, pertencente à Companhia Açucareira de Alagoas, deu-se a explosão da quarta caldeira, matando e ferindo muitos operários que se achavam no local do sinistro, para onde seguiram os indispensáveis socorros médicos. São ainda desconhecidos os pormenores da catástrofe.

Esses fatos, anteriores a 1925, chegavam, com certeza, ao conhecimento dos potenciais compradores. Neste caso, foram considerados irrelevantes. Meu avô achou a usina atraente e oferecida à venda por um preço convidativo. Fez a compra. E aí, ao que tudo indica, a maldição da Uruba se voltou contra ele e os novos proprietários.

Um assassinato pode ter sido o primeiro sinal dos problemas que viriam a acontecer na época em que meu avô e seus sucessores na família estiveram à frente da usina. Dizia o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 22/10/1931 (pág. 3): "Foi assassinado nas matas do Engenho Patrocínio o sr. João Paes, administrador de campo da usina Uruba, estando a polícia investigando os motivos do crime.
  
Mas, o pior viria em seguida, pois iria atingir o próprio Manoel Sebastião. Segundo as memórias de sua filha Heloisa, após um começo atribulado, a Uruba passou a funcionar bem e a gerar muito dinheiro:

Houve uma época de tantas dificuldades financeiras, que Maria do Carmo e eu [as duas filhas mais velhas de Manoel Sebastião] tivemos que sair do colégio, antes de terminarmos os estudos, permanecendo Stella [a terceira filha, minha mãe], pois já estava na ocasião de Francisco [o primeiro filho homem] começar [a estudar] e não havia recursos para manter quatro filhos internos. Depois, as dificuldades foram sendo superadas: o açúcar estava com ótimo preço, as máquinas mais velhas tinham sido substituídas. Não era preciso comprar mais canas [de fornecedores], a usina já possuía muitas fazendas para cultivar sua própria cana.

Planos foram feitos de construir uma nova casa, maior, mais confortável e situada em lugar privilegiado, nas terras da usina. A mulher de Manoel, minha avó Olga, assinava publicações europeias de decoração e arquitetura. Das muitas plantas que examinaram em números antigos dessa revista, ela e o marido escolheram uma. A casa, que ainda existe (estive nela em 2016), foi construída. Com estilo eclético, é muito bonita.

Isso aconteceu em 1936. Toda a família aguardava com ansiedade o dia da mudança. Volto a citar Heloisa Pedrosa:

Mas, infelizmente, quando a casa já estava pronta, mobiliada, algumas roupas e objetos lá, o papai adoeceu: apareceram uns pequenos furúnculos na nuca, no começo do cabelo. A princípio pareciam cousa insignificante, mas foram piorando tanto que foi chamado um médico, Dr. Albino Magalhães, que não achou bom o aspecto dos furúnculos e os diagnosticou como um “antraz” (moléstia infecciosa aguda). O médico pediu o internamento dele, o que foi feito no dia seguinte. Era 19 de março de 1936, dia de São José.

Continua a filha:

Mamãe ficou no hospital com o papai; Francisco e Hermano [o segundo filho homem] estavam em Maceió, no colégio. Maria do Carmo, Stella, Vavá [Valentina, a filha mais nova] e eu ficamos em Riachão, com a Dindinha. Foram dias de ansiedade: um dia parecia que ele estava melhor, no dia seguinte já estava pior. Íamos quase diariamente a Maceió.

Enfim:

Não havia ainda antibióticos e, para complicar mais, os exames revelaram que o papai estava diabético. No dia 4 de abril, à tarde, creio que eram cinco horas, faleceu. E mudamos para a tão sonhada casa sem ele.

O infeliz desenlace, entretanto, não seria o último dos azares da Uruba, nessa nova fase da usina. Dois anos e meio depois da morte prematura de Manoel Sebastião, o mesmo Diario de Pernambuco (1/11/1938) trazia a notícia vinda de Alagoas:

Faleceu o diretor da Usina Uruba. Maceió, 31 (DP). Ontem à noite, na Usina Uruba, município de Atalaia, o sr. Arthur Gondim, diretor do estabelecimento, foi acidentado, fraturando a base do crânio. A vítima faleceu no hospital.

Alguns anos depois, outra tragédia: “Assassinado na Usina Uruba o sr. José Felipe Gondim” (Diario de Pernambuco, 11/6/1949, pág. 3). Na primeira notícia a respeito, publicada um dia antes, o nome da vítima fora grafado apenas como “José Gondim”. Todo mundo pensou que tinha sido o próprio sócio principal – o virtual dono da usina, após a morte de Manoel Sebastião – que havia morrido. Precisou o jornal esclarecer as coisas, um dia depois. Tratava-se de um irmão do industrial, que o estava visitando.

Minha mãe e sua irmã Heloisa guardaram profundas mágoas dos Gondim – o principal deles, José Elpídio, era casado com Maria Alice, irmã de Manoel Sebastião -, que teriam usurpado a usina, após a morte deste. Não posso garantir que estavam certas nessa avaliação. De qualquer forma, talvez pela ação da justiça divina, os supostos usurpadores pagaram um preço alto pelo que possam ter feito.

Ou teria sido o Bicho da Uruba o responsável por todas essas tragédias?

_____________________________
(*) Luís da Câmara Cascudo, “Geografia dos mitos brasileiros”, Cultura Política (Rio de Janeiro), Ano IV, n. 37, fev. 1944. (Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional). Em 1976, Cascudo ampliou este artigo e o transformou em livro com o mesmo nome.

Nenhum comentário:

Postar um comentário