quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

“OS SANTOS MURMÚRIOS MISTERIOSOS DAS MADRUGADAS TRANSLÚCIDAS...”

Gustavo Maia Gomes
Carlos Gomes chegou a Belém para morrer. Sua agonia de quatro meses foi acompanhada pela imprensa local. “É compungidos pela mais profunda dor que noticiamos terem-se agravado muito, ontem, ao cair da noite, os sofrimentos do glorioso maestro” (Folha do Norte, 21/5/1896). Daquela, ainda bem, ele escapou.
Os jornalistas tinham êxtases: “Pobre Carlos Gomes! Ilustre e resignado mártir! Procura ouvir ainda nas amplitudes de teu ideal a incomparável ballata, onde deixaste toda a essência do teu carinhoso sentir e toda a seiva afetiva do teu gênio” (17/8).
No mesmo dia, o jornal informou: “Começaram a correr boatos de se terem subitamente agravado os sofrimentos deste grande inditoso, que é presa de uma agonia inexorável – o velho e glorioso maestro Carlos Gomes. Dentro em pouco, os boatos eram substituídos por outro tristíssimo: dizia que o maestro já havia exalado o último alento. Enfim, que para aquela organização física, soara o momento das dores últimas, dos sofrimentos derradeiros” (17/9).
Ou seja, a organização física tinha morrido. “Tranquila foi a hora final de Carlos Gomes. O grande espírito desprendeu-se, calma, placidamente, sem o cortejo de sofreres que geralmente era previsto. Expirou, com os grandes olhos abertos, como que fixos numa visão imponderável – quem sabe? – a [visão] das glórias pretéritas que ainda vinha, cheia de flores e luzes, atenuar-lhe, com todo o peregrino passado que evocava, a tremenda hora do aniquilamento fisiológico” (17/9).
Continuava a matéria: “Logo de manhã foi o cadáver fotografado pelo sr. Oliveira, com a roupa com que falecera, tirando o artista Domenico de Angelim um croquis. Hoje será novamente, depois de embalsamado e vestido, fotografado por aquele artista o nosso querido morto” (17/9).
Dois dias depois, “todas as classes movimentam-se para dar público testemunho dos seus pesares na grande procissão cívica em que, amanhã, será levado o corpo do excelso épico para a necrópole da Soledade, onde ainda, até a hora em que o embarquem para São Paulo, ouvirá ele, através da transparência de nossas tardes sugestivas e de nossas profundas noites inspiradoras, o canto suavíssimo das auras e esses santos murmúrios misteriosos das madrugadas translúcidas da terra hospitaleira e carinhosa onde a desdita assentou-lhe o Calvário tremendo” (19/9).
E, finalmente: “Ainda terão de brilhar por algum tempo sobre aquelas estremecidas relíquias os clarões benfazejos de nosso formosos luares a despejarem-se em catadupas da azulea imensidade em cujo seio vezes muitas perdeu-se o olhar de Carlos Gomes” (19/9).
O cortejo fúnebre arrastou multidões para as ruas de Belém. E deve ter feito a glória literária de muitos poetas e oradores daquelas terras.

(Publicado no Facebook, 3/2/2020)

Nenhum comentário:

Postar um comentário