sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Bolinha de Cambará


Gustavo Maia Gomes
Recife, 11-1-2019

Bolinha de Cambará, em foto publicada no
Diário de Pernambuco, em 28/4/1974


– “Seu” Gilberto Freyre, o senhor quer bolinha de cambará, sinhozinho?

– Entra, Bolinha de Cambará. Madalena, uma cadeira pro Bolinha descansar.

O diálogo foi reproduzido por Reinaldo Belo (Diário de Pernambuco, 16/4/1972). Era assim, continua o jornalista, “fácil, fácil, que Manuel Vicente de Lima [o Bolinha de Cambará] tinha acesso às casas mais ilustres da província”. Não apenas a de Gilberto e Madalena Freyre. Estácio Coimbra, governador deposto em 1930, o recebia em palácio. Deputados ilustres, igualmente.

Ontem, falei de Chá Preto e Pente; hoje, relembro outro tipo marcante das ruas recifenses: Bolinha de Cambará. “Não houve ambulante a quem as crianças quisessem mais bem”, disse o poeta Mauro Motta (1955). Eis como fazia para preparar seu produto: “Se pega uma porção de cambará, outra de casca de angico, outra de malva-rosa, outra de agrião e imburana e se bota pra cozinhar tudo junto com açúcar. Aí, depois do ‘ponto’, faz-se as bolinhas ou bombons e já se foi a gripe, a constipação e o resfriado”. (Diário da Manhã, 8-3-1976).

A mais antiga referência que encontrei a Manuel Vicente de Lima data de 1931. Cito-a para mostrar que ele já era famoso naquele tempo. Comparecera à delegacia um certo José Alves de Araújo Nolasco para prestar queixa “de indivíduo muito conhecido de alcunha ‘Bolinha de Cambará’ que, com ele se inimizando, agrediu-o na Rua Frei Caneca”. O agressor, “não possuindo nenhum instrumento perfurante, mordeu [o reclamante], produzindo ferida contusa com secção de músculos” (Diário de Pernambuco, 2/9/1931). Dentes de aço!

Isso pode não ter se passado como descrito ou, quem sabe, o homem reviu seus caminhos. Fato é que, 45 anos depois, Ana Maria Guimarães entrevistou Bolinha de Cambará e escreveu na matéria ser ele muito religioso. “Sou pegado com Papai do Céu, os santos e os anjos. Ai de mim se não fossem eles. Nunca chamei um nome feio, nunca faltei com respeito a ninguém” (Diario de Pernambuco, 6/3/1976). Esqueceu a dentada, ou o outro exagerou?

Em 1955, Bolinha de Cambará ainda ocupava “um pedaço do coração das crianças”, mas já era dado como velho. “Vem de longe, do tempo de nossos avós, quando ele já entoava as mesmas canções e já dava os mesmos passos. É um dos tipos populares da cidade. Forma o pequeno grupo de homens do povo, arrancados da massa e que são verdadeiramente conhecidos e admirados” (Jornal Pequeno, 18/10/1955).

Quase ao mesmo tempo, Mauro Motta, que chegou à Academia Brasileira de Letras, escreveu, assinando-se apenas “M”, na coluna Coisas da Cidade, do Diario de Pernambuco: “Era um transeunte esperado e infalível nas tardes do bairro [da Boa Vista]. Principalmente, no Pátio de Santa Cruz, na Rua das Ninfas, na Rua do Progresso, na [Avenida] Conde da Boa Vista e na [Rua] Barão de São Borja, com uma parada para as cantorias e lorotas na calçada do Politeama [antigo cinema]” (Diario de Pernambuco, 23/7/1955, republicado com a assinatura completa do autor em 20/10/1970).

Quatro anos depois, em 1959, portanto, veio ao Recife o compositor Lamartine Babo. Na recepção que lhe foi oferecida, “lá para as tantas, apareceu um elemento precioso do nosso folclore, o negro Bolinha de Cambará. Sem se fazer de rogado, Bolinha cantou o seu pregão, conhecido por três gerações nesta capital. Lamartine não teve dúvidas. Apanhou um pedaço de papel, riscou um pentagrama e registrou a partitura musical de ‘Bolinha de Cambará’. Pretende aproveitar o tema para uma composição sobre o Recife” (Diario de Pernambuco, 8/3/1959).

Assim cantou o velho homem:

Eu tenho bolinha de cambará
Um pacote é um tostão
Eu tenho bolinha de cambará
Cura tosse e constipação

Não sei se a promessa de Lamartine Babo foi cumprida. Nem precisou ser, pois, em 1969, Gilvan Chaves gravou a música e letra do que Manuel Vicente de Lima, o Bolinha de Cambará, tanto cantara pelas ruas da cidade. Está no disco “Pregões do Recife”, que eu destaquei com um link em postagem de hoje (11/1/2019) mais cedo no Facebook. Há, no mesmo disco, também uma declamação de como Chá Preto e Pente anunciava seus produtos, entre uma malcriação e outra.

E este outro mote que eu ainda sabia de cor: “Vassoureiro! Vasculhador, espanador, esteira d’Angola, colher de pau, raspa de coco e greia”. A última palavra, pronunciada com ênfase digna de ator dramático, queria dizer, no português da norma culta, “grelha”. Ah, Gilvan Chaves também cantou o “Chora menino, pra comprar pitomba; chora menino pra comprar pitomba”; “Eu tenho lã de barriguda pra travesseiro”. E, ainda, o pregão do vendedor de macaxeira: “Caxeira! É Rosa e Bahia. Cozinha na água fria, dona Maria”. Maravilhas.

Assim cantavam os vendedores ambulantes do Recife. Em 1980, muitos deles haviam sido silenciados pelo progresso que cria e destrói. Ou tinham morrido. Gustavo Krause era prefeito do Recife. Visitou uma escola municipal e ali ouviu os alunos cantarem os pregões tradicionais, fadados, talvez, ao esquecimento. Disse, então: “Provar a bolinha de cambará tem sabor de saudade, ouvir ‘chá preto e pente’ é ouvir o som da saudade, escutar os pregões da cidade é escutar a saudade” (Diário da Manhã, 13/3/1980).

Desconheço quando Manuel Vicente de Lima, o Bolinha de Cambará, nasceu. Ainda havia a escravidão, segundo os jornais. Sei, contudo, que ele manteve a mesma idade durante bastante tempo. Em 1973, o apresentador de TV Fernando Castelão o entrevistou (Diario de Pernambuco, 16/5/1973). Bolinha tinha 120 anos. Em 1976, segundo a já citada reportagem de Ana Maria Guimarães, ele continuava com os mesmos 120 anos. Não sei qual das duas contas estava certa. Provavelmente, nenhuma.

A longevidade de Manuel Vicente de Lima bem poderia ser usada como propaganda das bolinhas de cambará, embora ele deva ter morrido pouco depois da entrevista acima referida. Com sorte, entretanto, qualquer um de nós ainda ouvirá Gilberto Freyre dizer, no velho casarão de Apipucos, hoje sede da fundação com seu nome, aquela frase acolhedora: “Madalena, uma cadeira pro Bolinha descansar”.

Um comentário:

  1. Nasci e me criei no Bairro de São José. Ainda garoto na Rua Padre Floriano estava sentado no batente de casa. Chegou um Senhor Negro e bem atencioso perguntou pelo meu Pai. Chamei papai e quando ele viu quem queria falar com ele gritou...Maria, vem ver Bolinha da Cambará, a conversa durou um pedaço da noite e atento gravei aquela fisionomia ainda de escravo fugido da Senzala, que narrou Histórias linda de nosso Recife.Minha Mãe o alimentou e Papai lhe deu alguns trocados para continuar sua jornada nas vidas recifenses. Foi outras vezes lá em casa, crescí, e nunca mais ouví notícias dele na vida de minha Cidade. Saudades do meu Bairro de São José e do mercado de São José, Amo tanto o Recife que brigo com quem o maltrata, e, Bolinha de Cambará faz parte da Vida e da História do Recife .

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