quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A VIAGEM

Gustavo Maia Gomes
 
Desde menina, Antuérpia mantinha os cabelos em perfeita forma. Alinhava-os com pentes de tartaruga; lavava-os com xampus comprados na Índia. Ou, se não na Índia, em Catolé do Rocha, Jordão de Baixo, Brasília Teimosa. O brilho era dado pela infusão do doutor Silvana; a maciez, pelo Xarope X-9, cuja fórmula secreta lhe fora ensinada por uma cigana de circo.
 
Aos quinze anos de idade, aqueles cabelos já tinham se tornado famosos. A sua dona nem era tão bonita, mas a cabeleira vasta e bem arrumada compensava essa deficiência. E assim Antuérpia ia tocando a vida. Estudando pouco, namorando um tanto e cuidando da aparência capilar o resto do tempo. Quando se casou com Espremildo, seus cabelos chegavam à altura dos joelhos. Jamais tinham sido cortados; jamais seriam, assegurava a quem lhe perguntasse.
 
Quarenta anos depois — Antuérpia já tinha netos e seus cabelos se estendiam pelo chão —, surgiu a moda das perucas. Moda é pouco, obsessão. Então, um dia, alguém chegou à casa da viúva (Espremildo, coitado, não durara mais do que três pentes) querendo comprar-lhe a cabeleira. A mulher bateu-lhe a porta na cara sem sequer saber quanto o homem estava disposto a pagar.
 
Pois essa — quanto ele queria pagar? — foi, justamente, a primeira pergunta feita a Antuérpia pela filha Jucileide, a mais velha e infeliz das três, pois o marido a traía com uma bezerra holandesa. Ficou revoltada porque a mãe despachara o visitante sem lhe permitir falar em dinheiro. Assim como Jucileide, suas irmãs Jucicleide e Setembrina também demonstraram descontentamento.
 
Tinham razão. Pois os cabelos de Antuérpia valiam uma fortuna. Por essa razão, houve grande expectativa quando outro corretor deixou vazar a notícia de que iria procurar a viúva com uma proposta irrecusável. O encontro aconteceu e, depois dele, o moço disse, em entrevista coletiva, que as negociações tinham avançado.
 
Não tinham; era mentira dele. Mesmo após saber que poderia ganhar um milhão de reais, Antuérpia achara insultante a ideia de vender seus cabelos por cinquenta centavos cada fio, com deságio para os menos longos. Jucileide, Jucicleide e Outubrina (esqueci de dizer que o nome da terceira irmã mudava conforme o mês) ficaram injuriadas. A bezerra holandesa expressou sua revolta negando-se a fazer sexo com o amante casado.
 
Àquela altura, a recusa de Antuérpia em vender seus cabelos já causava prejuízos à economia nacional. Os institutos de pesquisas equivocadas e previsões estapafúrdias eram unânimes em anunciar a pior recessão dos últimos cinco anos. A bolsa despencava. A seleção brasileira de futebol perdeu por sete a um da Alemanha. Alguma coisa precisava ser feita. E foi.
 
Cachemiro Rosalvo (um grande vigarista, como se veio a saber, tardiamente) tinha um plano. Espalhou nas redes sociais que era o homem mais rico do mundo por haver inventado o café pequeno que se podia desadocicar mexendo a colher no sentido anti-horário. (Coisa muito útil para quem tem a mania de pôr açúcar demais na xícara.) Quando o assunto bombou — só se falava nisso no Euíter, no Tuíter e no Eleíter —, o falso milionário foi ter com Antuérpia.
 
Ela mal podia acreditar no que estava vendo. Cachemiro contou-lhe, então, sua história. Era rico, sim. Mas tinha uma frustração. Sua mulher perdera os cabelos depois de ser internada na urgência pediátrica e receber sangue doado por Leandro Karnal. Desde então, vivia na maior infelicidade. Queria ter uma peruca, pelo menos. Eis a razão por que Cachemiro estava ali. Pretendia comprar os cabelos de Antuérpia e os oferecer à esposa careca. Estava disposto a dar em troca dois apartamentos de quatro quartos à beira-mar.
 
Antuérpia ia dizer NÃO quando percebeu que Jucileide, Jucicleide e Novembrina estavam na sala e tinham ouvido toda a conversa. Pressionada pelos olhares fulminantes das filhas, ela cedeu. Cachemiro mostrou os documentos que atestavam ser ele o dono dos imóveis. Fez a mulher assinar o contrato ali mesmo. Com a tesoura que trouxera consigo, separou-a de seus cabelos. Deu-lhe, em troca, um endereço e um número. De lá, alguém a encaminharia aos seus apartamentos.
 
Antuérpia, as três filhas, o genro e a bezerra holandesa esperaram uma semana antes de ir ao endereço indicado pelo comprador dos cabelos. No lugar, havia um edifício vistoso com o nome NASA escrito na entrada principal. Antuérpia mostrou o número que lhe fora dado. A atendente foi ao computador e o reconheceu em poucos segundos. Perguntou à mulher se ela queria assento no corredor ou à janela.
 
Tratava-se, o número, da reserva de um lugar no voo para Marte. Partiria em poucas horas. Antuérpia vacilou. Descabelada, caíra em depressão. Não tinha ânimo para coisa alguma. Dezembrina tomou-lhe o lugar. Não se sabe se encontrou os apartamentos.

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