segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

No tempo de miss Júpiter

Uma rua chamada Olímpio (V)
Gustavo Maia Gomes
(7/2/2018)
Moravam pessoas interessantes na rua Olímpio Tavares, em Casa Amarela, Recife, em meu tempo de criança, adolescente, adulto jovem. Aí pelos anos entre cinquenta e setenta dos 1900. Nenhum Rui Barbosa, Princesa Isabel, Gilberto Freyre ou Anita Garibaldi. Mas, gente para ser lembrada, mesmo com toda a sua falta de proeminência. Qualidade que, afinal, elas repartiam comigo.
Gente como Itacy, pai de Otávio e dono de um Javelin (“Já Vem Ruim”, depreciávamos). Mantinha-o parado, sem um grão de poeira. Lustrando. Com o carro, se relacionava bem; com o filho, vivia às turras, entremeadas por espancamentos. Otávio inventava expressões: “fábrica de bater prego” significava qualquer coisa muito barulhenta; “catinga de mau cheiro”, a fedentina insuportável.
Também fabricava botões de quenga. Explico. No futebol de mesa havia os botões de chifre, que podiam ser de torno ou de detenção – quer dizer, produzidos por presos –, e os de quenga, a casca dura do coco. Pela ordem hierárquica, os de torno eram os melhores; os de detenção superavam os de quenga, exceto, talvez, os de quenga fabricados por Otávio -- a quem chamávamos Bifuca.
Ele e o pai moravam na parte baixa da rua. Em frente, uma casa maior era a de Bento. Esse não tinha filhos, de modo que pouco sabíamos da vida dele. Comerciante, talvez. Seu Chevrolet 1950, ainda brilhando de fábrica, tinha pneus com faixa branca, impecáveis. Aos domingos, Bento fazia com ele a volta do quarteirão. Nos outros dias, o carro ficava na garagem.
Poucas casas acima, viviam Djanira e os filhos Antônio, Maria Júlia e Marta. Antônio, vários anos mais velho do que eu, tentou ser piloto da Aeronáutica. Não conseguiu. Sua visão, se minha lembrança é correta, não era suficientemente boa. Mesmo assim, passou anos longe da rua. Deve ter estudado fora do Recife, para onde, que eu saiba, só voltou já adulto.
Marta era bonita. Com pendores artísticos reais ou imaginários, puxava os desfiles cívicos do Colégio Bandeirantes – era a baliza, como dizíamos. Nessas ocasiões, suas pernas públicas chamavam a atenção, em tempos tão recatados. Um dia, houve um concurso de beleza num pequeno clube do bairro. Com medo, talvez, de que uma derrota abalasse o prestígio de Marta, Djanira escalou Maria Júlia para concorrer. Ela ganhou. Tornou-se a única miss Júpiter de todos os tempos.
Do outro lado da rua, o casal Barreto – Antônio e Georgina – tinha três filhos: Lula, Papu e Linda, e um agregado, Amaro, irmão de Georgina. Esse não trabalhava. Um dia, em 1958, “seu” Barreto – comerciário – morreu. A família entrou em grave crise econômica. Para sobreviver, Georgina vendeu as galinhas e os periquitos que o marido criava no quintal. Tentou fazer Amaro conseguir um emprego, mas, não conseguindo, pôs a casa para alugar. Nunca mais soube deles.
Jairo, quando adulto, foi trabalhar em Maceió e ficou por lá. Mas, antes disso, morou um tempo com os pais Durval e Ester na rua chamada Olímpio. Ainda hoje é amigo de meu irmão, Ivan, e meu. Durval (gerente de uma distribuidora de bebidas) e Ester tinham outros quatro filhos: Haidé, Raquel, Fernando e Zélia. Todos se mudaram, em meados dos anos sessenta, para o Rio de Janeiro.
Todos, menos Jairo, que passou uma temporada conosco. Não quis sair do Recife por causa de Neide, com quem se casou. Frequentemente, driblando a vigilância da noiva, fazia programas noturnos e, ao chegar, de madrugada, repetia aos gritos “Ivanzinho, Gustavinho” enquanto caminhava da rua ao quarto onde dormíamos, externo à casa. Para afugentar os ladrões, explicava ele.
As casas dos irmãos Aguiar, Marcelo e Marcos, ficavam aos lados da minha. Marcelo votava em Adhemar de Barros, o governador rouba-mas-faz de São Paulo que se candidatou duas vezes a presidente. Quando saiu da Goodyear, a fábrica de pneus de que era representante comercial, comprou um carro Renault Rabo Quente. Tinha opiniões inflexíveis sobre política e moralidade, que defendia aos gritos. Eu jogava baralho com seu filho Zé Paulo. Ele sempre roubava. Não por isso, também era surrado regularmente pelo pai. Sem grandes resultados. Sua vida foi tumultuada.
Com Marcos, o segundo Aguiar, tive relações duradouras. Demasiadamente duradouras, receio. Ele era médico e uma de suas filhas viria a ser minha primeira mulher. Podia se irritar facilmente e, então, ser agressivo. Criava porcos no quintal. Para alimentá-los, recolhia restos de verduras e excrementos de galinha, punha tudo em um tonel e deixava a mistura apodrecer na calçada da casa. O mau cheiro resultante invadia as narinas de quem estivesse num raio de cem metros.
Seu repertório de excentricidades é inexcedível. Durante um tempo, foi radioamador, numa categoria abaixo da principal. Como falava alto, podíamos acompanhar suas conversas noturnas a certa distância. De uma feita, desentendeu-se em pleno ar com a vizinha Sofia e, literalmente, a mandou "à merda". A mulher ficou uma arara. Deve ter protestado em alguma instância, produzindo um pequeno escândalo. Em consequência, Marcos teve o registro cassado ou foi suspenso por um tempo.
Certa feita, ele colocou uma bezerra no Perfect. Algo, aparentemente, impossível, pois aquele era um carro muito pequeno. Noutra, alojou uma vaca na Kombi, cujo espaço era maior, mas, não tanto. A cabeça do animal ficou projetada sobre o banco da frente, entre o motorista e o acompanhante, como se fora a de um passageiro. Não sei se a vaca participou da conversa entre Marcos e seu genro Manuel, que estava no carro e me contou o episódio, anos atrás.
Muitos dos sucessivos automóveis do meu futuro sogro não tinham bomba de gasolina. Pelo menos um carecia de freios confiáveis. Outro, só engatava a primeira marcha se um menino se esgueirasse por baixo dele com uma chave inglesa e destravasse alguma coisa. Era o mesmo menino que, ajudado por terceiros, empurrava o carro para pô-lo em movimento, pois não havia motor de partida.
A bomba quebrada – isso aconteceu com um dos carros – foi substituída por uma lata de combustível soldada em cima do carburador. A gasolina fluía por gravidade. Exceto nas ladeiras, quando era preciso que alguém se sentasse ao lado do motor, com a tampa parcialmente levantada, e suprisse o combustível manualmente, enquanto a viagem prosseguia. Sou testemunha ocular de quase tudo isso. À época, havia pouca fiscalização nas estradas; quase nenhuma nas cidades. E Marcos sempre se safava, se parado fosse, distribuindo amostras grátis de remédios aos policiais.
A mulher, Carmita, prima de minha mãe, era mais inteligente que o marido. Os filhos Antônio e Marcos, quando meninos e rapazes, foram amigos muito próximos. Estudamos um ano juntos, 1964, no Colégio Salesiano. Mas a amizade não sobreviveu à minha separação, em 2001. O mais velho chegou a praticar espionagem, começando a carreira com a tomada de fotos de meu quintal, para instruir a tentativa de extorsão feita pela irmã, de quem eu estava a me divorciar. Nos últimos anos, nos reconciliamos, relativamente.
Simplício, um velho mecânico solteirão que comprava carros velhos para reformar e revender, residia na parte mais alta da rua. Quase certamente, era homossexual, um escândalo, naquele tempo. (A rua teve outro deles, este notório, muito mais tarde: Airton, codinomes Marlene e Prefeitura. Tocava piano muito bem, para a rua inteira ouvir.) Simplício morreu, provavelmente, durante a primeira metade dos anos cinquenta. Muito depois, veio morar na rua, mas em outra casa, Albertino, que também ganhava a vida reformando carros velhos.
A casa em frente à minha – uma casa grande, contrastante com as demais, devia ter sido sede de engenho – era habitada pela família Amorim: Wandelcy e Nelly, os pais; Waldir, Nellysinha, Walter e Walmir, os filhos. Waldir era introspectivo, passou um tempo no Seminário, leu o livro e se entusiasmou com Liberdade sem Medo, de A. S. Neil. Viria a ser médico. Sua história terminou em tragédia, há um ano, mais ou menos. Nellysinha nasceu sem antebraços e sem mãos, mas, admiravelmente, teve vida tanto quanto possível normal: ia às festas, dançava, namorou e se casou no tempo devido. Estudou e trabalhou como jornalista. Os outros dois filhos, Walter e Walmir, muito mais jovens do que eu, com quem, portanto, não convivi muito, viviam fazendo traquinagens. Os dois se tornaram, anos à frente, empresários de sucesso.
Havia gente merecedora de lembrança também nos arredores da rua Olímpio Tavares. A lanchonete em frente à igreja do Arraial, distante 200 metros de onde eu morava, foi construída por um certo José. Era muito frequentada por nós todos, sempre ávidos por conversas e cervejas. Depois, vendido em sucessivas operações, o lugar foi bater nas mãos de um sujeito esquisito, logo apelidado de Sujinho, ou Todo-Sujo. Fazia suas necessidades no chão da própria barraca, que passou a exalar uma autêntica catinga de mau cheiro, como diria Otávio Bifuca.
Nas reuniões dominicais na calçada da igreja (fingíamos ir à missa, mas estávamos de olho, mesmo, nas meninas), era impossível não encontrar Rui, autoconvencido de ser a pessoa mais feia do mundo. Com certa razão, devo admitir. Do mesmo modo que nunca deixávamos de ver Candinho, um débil mental com um olho aberto e outro fechado. Dizia ele, para não gastar os dois ao mesmo tempo. O vendedor de cavacos (aqueles biscoitinhos enrolados que ainda hoje compro nas ruas), frequentemente, terminava ali seu dia de serviço, vendendo-nos toda a mercadoria restante. Mercadoria que ele transportava num grande recipiente metálico cilíndrico pendurado às suas costas.
Não sei como os vizinhos da rua Olímpio Tavares nos viam, a meus pais, irmãos e a mim, nos idos de cinquenta e sessenta. Discretos; talvez nem fôssemos notados. Ou, quem sabe, contraditoriamente, nos tomassem por esnobes, pobres, presunçosos, medíocres. Cabe a eles dizer.
Bons tempos, os da miss Júpiter.



Um comentário:

  1. Oi Gustavo gostei muito das suas publicações sobre a R.Olínpio Tavares,fiquei mais ainda quando vi a foto da casa n°80, sou de Natal RN e aqui mesmo conheci um morador dessa rua que se tornou meu marido, é Bel filho de Seu Albertino e D. Alaíde. EM 1985 visitei a Olímpio Tavares pela primeira vez e assim foi até 2015 quando foi vendida a casa de número 80. Conheci seus pais sua mãe muita simpática, elegânte e super educada, Ivanilda nessa época ia muito lá em D. Alaíde conversar com sua filha Marina que era era bem pequena e assim o tempo passou muito rápido e ficou só as lembranças da R. Olínpio Tavares n°80.

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