Gustavo
Maia Gomes
Sei, perfeitamente, com
a ajuda do Google, que Garanhuns só começou a existir em 1811. Mas o pavoroso crime
ali perpetrado, na semana passada, me fez relembrar o século 16 e, neste contexto,
uma temática importante da historiografia brasileira do período colonial : a
antropofagia.
MISSÃO
O padre Manoel da
Nóbrega chegou à Bahia em 1549, liderando o primeiro grupo de jesuítas. Sua missão
era transformar em católicos europeus os nativos brasileiros, que desconheciam por
completo a escrita, os metais, a pólvora, o Estado central e a fantasmagoria
cristã. Se conseguisse, ajudaria o projeto português de explorar economicamente
a terra ocupada, incorporando os índios como mão de obra; se não conseguisse, também
ajudaria, ao abalar os fundamentos da cultura local e contribuir para a
transmissão de epidemias letais aos primitivos habitantes, desta forma impossibilitando-os
de se tornarem obstáculos intransponíveis ao mesmo projeto.
Pouco tempo após
desembarcar, Nóbrega foi apresentado aos índios e à antropofagia. Suas cartas
revelam obsessão pela “coisa mais abominável que existe entre eles”. Hábito
pior, mas comparável, ao de terem os índios várias mulheres, todas temporárias,
enquanto os jesuítas não tinham nenhuma, fosse fixa ou transitória. Oficialmente,
pelo menos.
Canibalismo no Brasil colonial. (A) As
carnes humanas eram assadas no moquém e degustadas por todos; (B) dos intestinos e vísceras da vítima, as mulheres
faziam uma sopa que só elas e as crianças comiam. Gravuras de Théodore de Bry no livro de Hans Staden
citado nas referências.
“Se os índios matam
alguém na guerra”, escreveu o padre, “o partem em pedaços e depois de moqueado
o comem com a mesma solenidade; e tudo isto fazem com um ódio cordial que têm
um ao outro, e nestas duas coisas, isto é, terem muitas mulheres e matarem os
inimigos, consiste toda a sua honra”. “Moquear” era assar a carne no moquém, a
churrasqueira dos tupis.
Ainda segundo
Nóbrega: “quando [os nativos capturam algum inimigo], trazem-no com grande
festa com uma corda pela garganta e dão-lhe por mulher a filha do Principal, ou
qual outra que mais o contente, e põem-no a cevar como porco, até que o hajam
de matar, para o que se ajuntam todos os da comarca a ver a festa. E um dia
antes que o matem, lavam-no todo e, no dia seguinte, põem-no em um terreiro
atado pela cinta com uma corda. Morto, cortam-lhe logo o dedo polegar, porque
com aquele atirava as flechas, e o demais fazem em postas para o comer, assado
e cozido”.
E se refestelam, acrescentaria
ele, em outras ocasiões. Mais ou menos, como deve ter acontecido em Garanhuns, quase
cinco séculos depois. É a história sendo reescrita como farsa da pior qualidade.
REFLEXÕES
Seria a antropofagia evidência
definitiva de que os nativos eram bárbaros? Os jesuítas pensaram assim. Já os
intelectuais do Renascimento, dentre os quais, Michel de Montaigne, tiveram, em
relação aos índios brasileiros, sentimentos que oscilaram desde o mito do bom
selvagem ao repúdio a tudo deles que diferisse da normalidade europeia. Repúdio
apenas levemente atenuado pela crença de que os tupis comiam carne humana “não
por gosto ou apetite”, mas por vingança.
Para Montaigne, entretanto
(em 1580), por condenáveis que fossem os costumes recém-descobertos na América,
nem mesmo a prática do canibalismo pelos índios brasileiros era motivo
suficiente para os europeus reivindicarem superioridade moral. Isso porque coisas
tão ruins – que incluíam a antropofagia – ou piores estavam acontecendo ao seu
lado, no quadro das guerras religiosas que se seguiram à Reforma.
Além do que
escreveram Nóbrega e Montaigne, houve, na Europa do século 16, duas discussões
escolásticas – ou seja, controladas pela igreja Católica – envolvendo a
antropofagia. Uma revolvia em torno da seguinte questão: se uma pessoa comera
muitos seres humanos durante a vida, seu corpo se havia transformado em uma
assembleia de carnes alheias. Sendo assim, quando chegasse o dia do juízo
final, quem ressuscitaria? O antropófago, carregando pedaços de mil outros
homens e mulheres? Ou os que tinham sido comidos? Não poderia ser os dois, por
falta de matéria prima.
A outra discussão, ainda
mais perturbadora, tinha a ver com um dos pilares do catolicismo: a alegada
presença do corpo de Cristo no pedaço de pão comido nas missas pelos fieis.
Como a Igreja garante que aquilo é, realmente, o que ela diz ser, deduz-se, na
mais rigorosa lógica, que os católicos são antropófagos. Uma conclusão
perturbadora, resolvida pela abolição da lógica.
Saindo da Europa quinhentista
e voltando à terra dos índios comedores de gente, Oswald de Andrade, figura
central do movimento modernista, recorreu à gastronomia tupi como metáfora para
defender uma nova cultura brasileira que “deglutisse” as influências
estrangeiras, fundindo-as, depois disso, com os elementos autenticamente
locais. Seu “Manifesto Antropófago”, de 1928, começa dizendo que “só a
Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei
do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os
coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not
tupi that is the question”.
DE VOLTA A 2012
Os jesuítas se
escandalizaram com a antropofagia; Montaigne refletiu sobre ela em termos
filosóficos; os escolásticos produziram mistificação intelectual; Oswald de
Andrade fez literatura. Todos eram, mais ou menos, inocentes. Já os monstros de
Garanhuns, ao praticarem a atrocidade, nos trouxeram de volta o pior do século 16.
Em alguns casos, como no dos desavisados comedores de empadas feitas com carne humana,
de um modo particularmente traiçoeiro.
Na tradição das leis
e da Justiça brasileiras, eles serão condenados, mas a penas tão leves que, ao
serem, finalmente, julgados, já terão cumprido mais de um sexto delas, tendo o direito
de pagar o restante em regime aberto. Irão, portanto, diretamente, do Fórum
para casa, onde, com certeza, logo retomarão o preparo dos seus salgadinhos especiais.
Se, ao menos, o
inferno existisse...
SOBRE O ASSUNTO
Catalin Avramescu, An
Intellectual History of Cannibalism (Tradução para o inglês de Alistair Ian
Blyth). New Jersey, Princeton University Press, 2011
Fernão Cardim, Tratados
da Terra e Gente do Brasil. Transcrição, introdução e notas de Ana Maria de
Azevedo, São Paulo, Hedra, 2009
Hans Staden, Viagem
ao Brasil. Rio de Janeiro: Academia Brasileira, 1930, 186 pp. (A edição
original é de 1557).
Jorge Couto, A
construção do Brasil: Ameríndios, portugueses e africanos do início do
povoamento a finais de Quinhentos, 3a ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011
Manoel da Nóbrega, Cartas
do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1988 (Coleção Cartas Jesuíticas, I)
Manuela Carneiro da Cunha, “Imagens de índios do
Brasil: o século XVI”, Estudos Avançados,
vol. 4, n. 10, São Paulo, dezembro 1990
Mário Maestri, A
terra dos males sem fim: Agonia tupinambá no litoral brasileiro (Século
XVI), Porto Alegre, Bruxelas, 1990-1991
Michel de Montaigne, Ensaios. Tradução de Sérgio Milliet. Abril Cultural, São Paulo,
1972, p. 107. (A edição original do Livro I é de 1580)
Oswald de Andrade, “Manifesto Antropófago”, Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1,
maio de 1928
Sara Castro-Klarén, “Parallaxes: Cannibalism and
Self-Embodiment or the Calvinist Reading of Tupi A-Theology”, in Jeffrey Jerome
Cohen and Gail Weiss (eds), Thinking the
Limits of the Body. Albany, State University of New York, 2003
Este artigo está sendo publicado,
simultaneamente, em: http://www.blogdatametrica.com.br;
(16/04/2012)
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