quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Guerra Fria, 1945-89 (Crônicas do Mundo, I)

Gustavo Maia Gomes
As “Crônicas do Mundo” tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos 60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de Judt; A revolução de 1989, de Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)

A crise dos mísseis em Cuba foi um dos
principais eventos da Guerra Fria
Alertado com o que julgava ser a marcha insensata para a inevitável Terceira Guerra Mundial, o sociólogo americano C. Wright Mills (um crítico da ordem estabelecida, mas academicamente respeitado) escreveu, em 1960:
Estamos no final de uma estrada militar que não leva senão à morte. A guerra fará desaparecer todas as nações, e mesmo assim seus preparativos constituem o esforço mais extenuante e maciço das principais sociedades do mundo de hoje. A guerra tornou-se total. A guerra tornou-se absurda. (Mills, pág. 19)
Mills estava falando da corrida armamentista e da batalha ideológica que a fazia parecer necessária, respeitável. Quase tudo o que aconteceu de importante na política internacional, de 1945 a 1989, teve a ver com essa disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética. Era a Guerra Fria.
Suez, 1956; Budapeste, 1956
Durante um tempo, antes de o televisivo Jornal Nacional ser criado (em 1/9/1969), os brasileiros ficavam sabendo o que se passava no mundo, especialmente, pelo Repórter Esso que, no Recife, era lido localmente e transmitido pela rádio Jornal do Comércio. Havia os jornais impressos, claro, e as revistas de circulação nacional como O Cruzeiro, Manchete, Visão. Mas estes, diferentemente do rádio, davam as notícias de ontem.
Deve ter sido pelo Repórter Esso que primeiro ouvi falar da “Guerra Fria” e da “crise de Suez”, uma sucessão de episódios (outubro e novembro de 1956) que envolveram a nacionalização do canal pelo presidente egípcio Nasser, as ações de guerra de Israel contra o Egito, a intervenção militar da Inglaterra e da França para proteger seus interesses em Suez, a reação internacional (os Estados Unidos, que desautorizaram publicamente a ação bélica anglo-francesa) e a intervenção de uma força de paz da ONU, parcialmente integrada por soldados brasileiros. Depois de semanas de tensão – que sempre poderia resultar em uma nova guerra mundial –, a crise esfriou.
Quase simultaneamente aos acontecimentos de Suez, ocorreu a invasão militar soviética em Budapeste, para extinguir a revolta dos húngaros contra o regime ditatorial a que viviam submetidos. Como lembra Archie Brown, neste episódio, o fato de o mundo já estar sobressaltado com os acontecimentos de Suez operou em favor da URSS, diluindo a reação contra a intervenção na Hungria. Mas não teria sido diferente, mesmo sem essa coincidência. Eventos posteriores (Praga, 1968) viriam reforçar a percepção de que os Estados Unidos e seus aliados da Europa não estavam dispostos a reagir militarmente contra a violência empregada pelos russos para proteger o império que eles haviam erigido nos anos imediatamente posteriores a 1945.
Citando Hobsbawm:
A URSS sabia (ou melhor, percebera), já em 1953, quando não houve reação aos tanques soviéticos que restabeleceram o controle diante de uma séria revolta operária na Alemanha Oriental, que os apelos americanos para “fazer retroceder” o comunismo não passavam de histrionismo radiofônico. Daí em diante, como confirmou a revolução húngara de 1956, o Ocidente se manteve fora da região de domínio soviético. (Hobsbawm, pág. 226)
De qualquer forma, a invasão da Hungria por tropas soviéticas deixou marcas profundas na reputação do comunismo, sobretudo, entre os jovens idealistas, cuja inclinação natural era simpatizar com a visão marxista de um mundo onde não havia (ou não haveria) a divisão da sociedade em classes.
Por que uma bondade tão boa tinha de ser imposta ao povo pela força das baionetas?
Oscar Niemeyer (1907-2012), o grande arquiteto brasileiro, comunista de nascimento, viveu 104 anos sem conseguir responder a essa pergunta. Eric Hobsbawm (1917-2012), o autor citado acima, tampouco.
Crise dos Mísseis, 1962; Praga, 1968
O episódio mais perigoso da Guerra Fria foi a crise dos mísseis (outubro de 1962), deflagrada depois que os Estados Unidos fotografaram armamentos nucleares em vias de ser instalados pela União Soviética em Cuba, portanto, a apenas 150 quilômetros do território norteamericano. Brandindo a ameaça de bombardear as instalações, John Kennedy decretou o bloqueio naval da ilha e exigiu a retirada dos mísseis, mas o líder russo Nikita Kruschev não o atendeu imediatamente.
Enquanto isso, navios da URSS estavam a caminho de Cuba e iriam ser interceptados pelos americanos. Haveria uma batalha de canhões? Em havendo, o que se seguiria a ela? Em caso contrário, que lado cederia? Durante treze dias, o mundo esteve mais perto do que nunca de uma guerra nuclear. A União Soviética acabou recuando, em troca (hoje se sabe) de algumas concessões dos Estados Unidos:
O presidente Kennedy assegurou que os EUA não atacariam Cuba e, sob a condição de que sua promessa não se tornasse pública, concordou em retirar mísseis americanos da Turquia. (Brown, pág. 313)
O entendimento dos dirigentes americanos à época (Judt, pág. 263-4) era que a União Soviética instalara os mísseis em Cuba para criar um contraponto estratégico ao conflito com os EUA em torno da Alemanha. (Até a construção do célebre muro, em 1961, Berlim Ocidental constituiu a porta de saída para milhares de alemães insatisfeitos com o regime comunista, e isso era fonte permanente de tensões entre as superpotências.) Na lógica da Guerra Fria, fazia sentido.
Também houve a Primavera de Praga (1968), um ensaio de relaxamento político feito pelos governantes comunistas tchecoslovacos (relaxamento da censura à imprensa, calendário para realização de eleições livres, promessa de criação do “socialismo com face humana”) que terminou, a exemplo do que já havia acontecido antes na Alemanha e na Hungria, com a invasão dos tanques soviéticos e o restabelecimento da normalidade comunista: ditadura absoluta, imprensa sob rígida censura, obediência irrestrita a Moscou.
Mais uma vez, os Estados Unidos protestaram pelo rádio. E só.
O término
A Guerra Fria tornou-se quente em várias ocasiões e lugares. Não na Europa, onde a divisão feita ao final da Segunda Guerra só foi contestada em 1948/49, com o bloqueio soviético a Berlim Ocidental e a consequente reação dos EUA; mas na Ásia (guerras da Coréia, 1950/53; Indochina-Vietnam, 1945/75), na África (as infindáveis guerras de descolonização, numa primeira etapa, e depois as guerras civis, interétnicas ou religiosas: Argélia, 1954/62; Congo, 1960; Angola, 1961/74, entre outras); e na América Latina (El Salvador, 1980/92; Chile, 1973; entre outros incidentes).
Segundo Archie Brown (pág. 696), a URSS e os EUA deram um fecho “psicológico” à disputa ideológica e armamentista no verão europeu de 1988, com a visita do presidente Ronald Reagan a Moscou; o fim “ideológico” teria ocorrido em dezembro do mesmo ano, com o discurso do líder soviético Mikhail Gorbachev nas Nações Unidas. Foi, porém, a aquisição da independência nacional, juntamente com a rejeição aos sistemas Comunistas, no leste europeu, ao longo de 1989, que selou o fim da Guerra Fria. (Brown, pág. 696)
Nas quatro décadas em que persistiu – ou nas quase sete décadas: Tony Judt (pág. 117) diz que “na Europa, a Guerra Fria não começou depois da Segunda Guerra Mundial, mas depois da Primeira” –, a disputa ideológica e armamentista ameaçou, por várias vezes, desencadear a terceira guerra mundial. O principal perigo era que um lado interpretasse erroneamente alguma ação do outro, provocando uma resposta nuclear. Ou que o disparo inicial ocorresse por acidente, ou por um ato de loucura de algum militar com acesso a bombas atômicas. Teria sido um evento inesquecível, exceto pelo fato de que não sobraria ninguém para lembrá-lo.
O confronto ideológico e armamentista entre URSS e EUA não foi apenas uma circunstância existente lá fora, que só dizia respeito diretamente ao cidadão comum quando seu país era invadido ou bombardeado por forças militares americanas (Coreia, 1950-53; Vietnam, 1965-75) ou soviéticas (Alemanha Oriental, 1953; Hungria, 1956; Tchecoslováquia, 1968; Afeganistão, 1979-89) ou quando, como em 1962, o mundo inteiro parecia prestes a se tornar um grande torresmo. A hostilidade entre as democracias ocidentais e as ditaduras comunistas afetou, na verdade, cada aspecto da vida de, praticamente, todas as pessoas em todos os países do mundo.
Influenciou, portanto, também a vida política do Brasil onde, desde 1935, a “ameaça comunista”, quase sempre, imaginária, foi repetidamente usada como pretexto para golpes de estado direitistas (1937, 1961, 1964) e para justificar a repressão a movimentos que lutavam contra a pobreza e a desigualdade social.

REFERÊNCIAS
C. Wright Mills, As Causas da Próxima Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. (A edição original é de 1960.)
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie Brown. Ascensão e Queda do Comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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