As “Crônicas do Mundo”
tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos
60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de
Judt; A revolução de 1989, de
Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)
Estudantes lançam pedras na Polícia. Paris, 7 de maio
de 1968. (Foto Central Press/Getty Images,
reproduzida pela Folha de S. Paulo on line, em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200804.htm)
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Gustavo Maia Gomes
Paris,
maio de 1968. Por um momento, pareceu que o mundo iria implodir, dando origem a
ninguém-jamais-soube-o-quê. Paradoxalmente, o Império da Desordem, se viesse a
ocorrer, começaria em um país rico, com a economia em crescimento, em pleno
emprego, dotado de eficazes esquemas de redistribuição da renda, e que, quando
os problemas surgiram, não enfrentava qualquer crise política ou ameaça
externa. Como explicar toda aquela agitação iniciada por estudantes
universitários (relutante e atrasadamente seguidos pelos sindicatos de
trabalhadores) que chegou a causar, por uns dias, a virtual paralisação da França?
Explicar
direito, ninguém, ainda, conseguiu. Mas algumas coisas ficaram menos obscuras,
com a passagem do tempo. Por exemplo: aquela foi uma revolta de jovens e é
sabido que pessoas de pouca idade, ainda desobrigadas de ganhar o próprio
sustento, são as típicas rebeldes sem causa. Isso ocorre em qualquer lugar, em
qualquer época. Não é surpresa, portanto, que também existisse entre os jovens
franceses. Surpreendente, sim, é que os protestos tenham atingido tamanhas
proporções. Isso, provavelmente, só pode ser explicado por um conjunto de
fatores que, por um instante histórico, se somaram naquele tempo e naquele
lugar.
Os acontecimentos
de maio
Tudo
começou com uma série de conflitos entre estudantes e a direção da Universidade
de Nanterre, em Paris, envolvendo reivindicações muito específicas, como o
direito dos homens frequentarem os dormitórios femininos. As autoridades universitárias
reagiram com violência, determinando o fechamento da instituição, em 2 de maio,
e ameaçando expulsar os que elas julgavam ser os líderes do movimento. No dia
seguinte, outros estudantes, particularmente, na Sorbonne, também em Paris, se
solidarizaram com seus colegas. Foram respondidos com a invasão desta universidade
pela polícia e seu subseqüente fechamento.
Mas
os tumultos apenas cresceram, depois disso. Em 6 de maio, a maior associação de
estudantes da França convocou uma marcha de protesto que reuniu 20 mil
estudantes, rechaçados a cassetetes e bombas de efeito pela Polícia. A multidão
se dispersou, porém vários manifestantes principiaram a construir barricadas
nas ruas, retirando as pedras do calçamento e lançando algumas delas contra os
policiais. A Polícia reagiu com brutalidade, o que acabou atraindo simpatias
para os estudantes. Os próprios sindicatos dos trabalhadores, até então hostis
ao movimento, passaram a se solidarizar com ele, convocando manifestações
públicas e uma greve geral para o dia 13 de maio.
A
greve aconteceu e teve grande impacto, fazendo a França, literalmente, parar;
além disso, ela desencadeou ações ainda mais perigosas para a estabilidade
social. Já no dia seguinte, comitês de trabalhadores passaram a ocupar as
fábricas. Pelos próximos 15 dias, as manifestações, agora de estudantes e
trabalhadores, se sucederam, cada vez mais numerosas. O governo entrou em
pânico. Anunciando que iria para sua residência de campo, o presidente Charles
de Gaulle desapareceu, sem dar notícia de onde estava nem mesmo aos seus
auxiliares imediatos. (Na época, o primeiro-ministro Georges Pompidou declarou
que ele havia fugido; hoje se sabe que foi se encontrar com militares franceses
na Alemanha, a fim de avaliar de que lado estaria o Exército, na eventualidade
de uma tentativa de tomada de poder pelos rebeldes.)
Enquanto
isso, o país permanecia paralisado. A população, exceto os estudantes e os trabalhadores
em greve, começou a se preocupar com o rumo que os acontecimentos estavam
tomando, levando a uma reação conservadora. Em 30 de maio (um dia após haver
desaparecido), De Gaulle regressou a Paris, dissolveu a Assembleia Nacional,
marcou eleições gerais para 23 de junho, anunciou, em discurso que não iria
renunciar, e exigiu que os trabalhadores voltassem às atividades. Setores do
governo deixaram vazar a informação de que tropas do Exército já se encontravam
nos arredores da capital, prontas a intervir para restabelecer a ordem.
Pouco
depois do discurso presidencial (pronunciado às 4:30 da tarde), uma multidão
calculada em 800 mil pessoas se concentrou na avenida Champs Élysées, marchando
em apoio ao governo. A agitação, rapidamente, retrocedeu. As eleições gerais
foram ganhas pelo partido gaullista, que saiu dos episódios de maio ainda mais
fortalecido. Não apenas Paris ou a França, o mundo havia passado por uma grande
comoção.
Estrutura,
conjuntura
Como
explicar a revolta estudantil?
Talvez
pela conjunção de circunstâncias permanentes e transitórias. Havia, por um
lado, os fatores estruturais. O principal deles foi o enorme aumento na
proporção dos jovens (e de estudantes universitários) na população total dos
países europeus, em decorrência do chamado Baby
Boom, ou o grande número de nascimentos ocorrido logo após a Segunda
Guerra. Havia, enfim, mais gente do que nunca nas universidades, o que gerou
uma espécie de lógica dos grandes números: dois rapazes protestando porque não
podem visitar, à noite, as moças que moram na ala feminina dos alojamentos é
uma coisa; 50 mil reclamando em coro e em altos brados da mesma proibição é
outra.
Pode
também ter acontecido – ainda falando dos fatores estruturais – que as
discrepâncias ideológicas que sempre dividem as gerações se tivessem tornado
particularmente agudas naquele momento. Os estudantes tinham 20 ou 25 anos, em
1968. Grande parte de seus pais havia nascido durante a Primeira Guerra,
enfrentado o desconforto da Grande Depressão, testemunhado a vergonha da
ocupação da França pelos nazistas, aturado o regime de Vichy, lutado na Segunda
Guerra, sofrido as consequências das perturbações econômicas nos anos de
conflito armado. Seu universo era, pois, este -- completamente diferente do de
seus filhos, que só haviam conhecido a rápida reconstrução no pós-guerra e 20
anos de prosperidade. Para os jovens franceses dos 1960, os grandes problemas
do mundo podiam ser as relações sexuais; para seus pais, eram espantar os
fantasmas do passado e dormir mais uma noite sem pesadelos. Não deviam ter
muita conversa.
Mas
nem mesmo essas e outras tantas razões estruturais teriam, sozinhas, produzido
a revolta. Foi necessária a conjunção de fatores conjunturais – não apenas na
França, no mundo – para precipitar os acontecimentos. Destes últimos, não houve
escassez. A Revolução Cultural na China estava em pleno curso. Observada à
distância, aquilo parecia a realização dos sonhos anarquistas, com a sucessiva
desmoralização pública de altos dirigentes partidários (não de todos, só dos
que poderiam fazer sombra a Mao Zedong, mas, à época, ninguém sabia disso). E o
que era melhor: desmoralização promovida por jovens idealistas, revolucionários
autênticos, reunidos na Guarda Vermelha. (De novo, não era bem assim, mas
parecia ser.)
Teve
mais, pois 1968 foi, realmente, um ano especial. Em janeiro, os guerrilheiros
vietcongues lançaram uma ofensiva contra o Vietnam do Sul apoiado militarmente
pelos Estados Unidos: até a embaixada americana em Saigon foi, temporariamente,
tomada. Depois disso, cresceu muito a oposição à guerra e se multiplicaram as
manifestações contra ela, em todo o mundo. Nos EUA, em adição ao movimento
pacifista que se agigantava, também ia a pleno curso a campanha pelos direitos
civis. (Em outro episódio dramático, Martin Luther King, o líder negro, foi assassinado
em 4 de abril).
E
ainda mais: na Tchecoslováquia, a invasão soviética ainda não havia acontecido,
mas a montagem do socialismo com face humana já estava sendo feita, projetando
esperanças libertárias por todo o mundo. Até mesmo no Brasil houve uma onda de
protestos contra a ditadura militar, que iriam culminar com a Marcha dos Cem
Mil, em 26 de junho de 1968, e com a reação violenta do regime (Ato
Institucional no 5, em 13 de dezembro).
Tudo
isso compunha um ambiente onde o protesto e a inquietação pareciam não apenas
necessários, bem vindos, simpáticos, mas até mesmo uma forma de vida para
estudantes e intelectuais.
A revolução que
nunca existiu
Esses
foram os fatores concomitantes à revolta dos estudantes parisienses. Em
retrospecto, é possível argumentar que eles explicam razoavelmente os
acontecimentos. Mas isso é fácil dizer agora, 45 anos passados. No momento em
que as coisas estavam acontecendo, ninguém entendia nada, nem das causas, nem
dos possíveis efeitos de tudo aquilo. Os efeitos, na verdade, foram poucos.
Vista de hoje, a revolta dos estudantes valeu mais pelo simbolismo das suas
frases escritas nos muros – “É proibido proibir”; “Seja realista, exija o
impossível”; “Decretado o estado de felicidade permanente” – do que por
qualquer outra coisa.
Essa
revolução não teve vítimas, o que, no final das contas, quer dizer que não foi,
absolutamente, uma revolução (Judt, pág. 418).
REFERÊNCIAS
Eric
Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século
XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony
Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa
desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor
Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie
Brown. Ascensão e Queda do Comunismo.
Rio de Janeiro: Record, 2010.
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