domingo, 24 de fevereiro de 2013

Paris, maio de 1968 (Crônicas do Mundo, III)


As “Crônicas do Mundo” tratam de eventos e processos políticos e econômicos internacionais nos últimos 60 anos. Foram motivadas pela leitura de quatro livros extraordinários: Era dos Extremos, de Hobsbawm; Pós-Guerra, de Judt; A revolução de 1989, de Sebestyen; e Ascensão e Queda do Comunismo, de Brown. (Veja as referências completas ao final deste texto.)
Estudantes lançam pedras na Polícia. Paris, 7 de maio 
de 1968. (Foto Central Press/Getty Images, 
reproduzida pela Folha de S. Paulo on line, em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200804.htm)











Gustavo Maia Gomes
Paris, maio de 1968. Por um momento, pareceu que o mundo iria implodir, dando origem a ninguém-jamais-soube-o-quê. Paradoxalmente, o Império da Desordem, se viesse a ocorrer, começaria em um país rico, com a economia em crescimento, em pleno emprego, dotado de eficazes esquemas de redistribuição da renda, e que, quando os problemas surgiram, não enfrentava qualquer crise política ou ameaça externa. Como explicar toda aquela agitação iniciada por estudantes universitários (relutante e atrasadamente seguidos pelos sindicatos de trabalhadores) que chegou a causar, por uns dias, a virtual paralisação da França?
Explicar direito, ninguém, ainda, conseguiu. Mas algumas coisas ficaram menos obscuras, com a passagem do tempo. Por exemplo: aquela foi uma revolta de jovens e é sabido que pessoas de pouca idade, ainda desobrigadas de ganhar o próprio sustento, são as típicas rebeldes sem causa. Isso ocorre em qualquer lugar, em qualquer época. Não é surpresa, portanto, que também existisse entre os jovens franceses. Surpreendente, sim, é que os protestos tenham atingido tamanhas proporções. Isso, provavelmente, só pode ser explicado por um conjunto de fatores que, por um instante histórico, se somaram naquele tempo e naquele lugar.
Os acontecimentos de maio
Tudo começou com uma série de conflitos entre estudantes e a direção da Universidade de Nanterre, em Paris, envolvendo reivindicações muito específicas, como o direito dos homens frequentarem os dormitórios femininos. As autoridades universitárias reagiram com violência, determinando o fechamento da instituição, em 2 de maio, e ameaçando expulsar os que elas julgavam ser os líderes do movimento. No dia seguinte, outros estudantes, particularmente, na Sorbonne, também em Paris, se solidarizaram com seus colegas. Foram respondidos com a invasão desta universidade pela polícia e seu subseqüente fechamento.
Mas os tumultos apenas cresceram, depois disso. Em 6 de maio, a maior associação de estudantes da França convocou uma marcha de protesto que reuniu 20 mil estudantes, rechaçados a cassetetes e bombas de efeito pela Polícia. A multidão se dispersou, porém vários manifestantes principiaram a construir barricadas nas ruas, retirando as pedras do calçamento e lançando algumas delas contra os policiais. A Polícia reagiu com brutalidade, o que acabou atraindo simpatias para os estudantes. Os próprios sindicatos dos trabalhadores, até então hostis ao movimento, passaram a se solidarizar com ele, convocando manifestações públicas e uma greve geral para o dia 13 de maio.
A greve aconteceu e teve grande impacto, fazendo a França, literalmente, parar; além disso, ela desencadeou ações ainda mais perigosas para a estabilidade social. Já no dia seguinte, comitês de trabalhadores passaram a ocupar as fábricas. Pelos próximos 15 dias, as manifestações, agora de estudantes e trabalhadores, se sucederam, cada vez mais numerosas. O governo entrou em pânico. Anunciando que iria para sua residência de campo, o presidente Charles de Gaulle desapareceu, sem dar notícia de onde estava nem mesmo aos seus auxiliares imediatos. (Na época, o primeiro-ministro Georges Pompidou declarou que ele havia fugido; hoje se sabe que foi se encontrar com militares franceses na Alemanha, a fim de avaliar de que lado estaria o Exército, na eventualidade de uma tentativa de tomada de poder pelos rebeldes.)
Enquanto isso, o país permanecia paralisado. A população, exceto os estudantes e os trabalhadores em greve, começou a se preocupar com o rumo que os acontecimentos estavam tomando, levando a uma reação conservadora. Em 30 de maio (um dia após haver desaparecido), De Gaulle regressou a Paris, dissolveu a Assembleia Nacional, marcou eleições gerais para 23 de junho, anunciou, em discurso que não iria renunciar, e exigiu que os trabalhadores voltassem às atividades. Setores do governo deixaram vazar a informação de que tropas do Exército já se encontravam nos arredores da capital, prontas a intervir para restabelecer a ordem.
Pouco depois do discurso presidencial (pronunciado às 4:30 da tarde), uma multidão calculada em 800 mil pessoas se concentrou na avenida Champs Élysées, marchando em apoio ao governo. A agitação, rapidamente, retrocedeu. As eleições gerais foram ganhas pelo partido gaullista, que saiu dos episódios de maio ainda mais fortalecido. Não apenas Paris ou a França, o mundo havia passado por uma grande comoção.
Estrutura, conjuntura
Como explicar a revolta estudantil?
Talvez pela conjunção de circunstâncias permanentes e transitórias. Havia, por um lado, os fatores estruturais. O principal deles foi o enorme aumento na proporção dos jovens (e de estudantes universitários) na população total dos países europeus, em decorrência do chamado Baby Boom, ou o grande número de nascimentos ocorrido logo após a Segunda Guerra. Havia, enfim, mais gente do que nunca nas universidades, o que gerou uma espécie de lógica dos grandes números: dois rapazes protestando porque não podem visitar, à noite, as moças que moram na ala feminina dos alojamentos é uma coisa; 50 mil reclamando em coro e em altos brados da mesma proibição é outra.
Pode também ter acontecido – ainda falando dos fatores estruturais – que as discrepâncias ideológicas que sempre dividem as gerações se tivessem tornado particularmente agudas naquele momento. Os estudantes tinham 20 ou 25 anos, em 1968. Grande parte de seus pais havia nascido durante a Primeira Guerra, enfrentado o desconforto da Grande Depressão, testemunhado a vergonha da ocupação da França pelos nazistas, aturado o regime de Vichy, lutado na Segunda Guerra, sofrido as consequências das perturbações econômicas nos anos de conflito armado. Seu universo era, pois, este -- completamente diferente do de seus filhos, que só haviam conhecido a rápida reconstrução no pós-guerra e 20 anos de prosperidade. Para os jovens franceses dos 1960, os grandes problemas do mundo podiam ser as relações sexuais; para seus pais, eram espantar os fantasmas do passado e dormir mais uma noite sem pesadelos. Não deviam ter muita conversa.
Mas nem mesmo essas e outras tantas razões estruturais teriam, sozinhas, produzido a revolta. Foi necessária a conjunção de fatores conjunturais – não apenas na França, no mundo – para precipitar os acontecimentos. Destes últimos, não houve escassez. A Revolução Cultural na China estava em pleno curso. Observada à distância, aquilo parecia a realização dos sonhos anarquistas, com a sucessiva desmoralização pública de altos dirigentes partidários (não de todos, só dos que poderiam fazer sombra a Mao Zedong, mas, à época, ninguém sabia disso). E o que era melhor: desmoralização promovida por jovens idealistas, revolucionários autênticos, reunidos na Guarda Vermelha. (De novo, não era bem assim, mas parecia ser.)
Teve mais, pois 1968 foi, realmente, um ano especial. Em janeiro, os guerrilheiros vietcongues lançaram uma ofensiva contra o Vietnam do Sul apoiado militarmente pelos Estados Unidos: até a embaixada americana em Saigon foi, temporariamente, tomada. Depois disso, cresceu muito a oposição à guerra e se multiplicaram as manifestações contra ela, em todo o mundo. Nos EUA, em adição ao movimento pacifista que se agigantava, também ia a pleno curso a campanha pelos direitos civis. (Em outro episódio dramático, Martin Luther King, o líder negro, foi assassinado em 4 de abril).
E ainda mais: na Tchecoslováquia, a invasão soviética ainda não havia acontecido, mas a montagem do socialismo com face humana já estava sendo feita, projetando esperanças libertárias por todo o mundo. Até mesmo no Brasil houve uma onda de protestos contra a ditadura militar, que iriam culminar com a Marcha dos Cem Mil, em 26 de junho de 1968, e com a reação violenta do regime (Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro).
Tudo isso compunha um ambiente onde o protesto e a inquietação pareciam não apenas necessários, bem vindos, simpáticos, mas até mesmo uma forma de vida para estudantes e intelectuais.
A revolução que nunca existiu
Esses foram os fatores concomitantes à revolta dos estudantes parisienses. Em retrospecto, é possível argumentar que eles explicam razoavelmente os acontecimentos. Mas isso é fácil dizer agora, 45 anos passados. No momento em que as coisas estavam acontecendo, ninguém entendia nada, nem das causas, nem dos possíveis efeitos de tudo aquilo. Os efeitos, na verdade, foram poucos. Vista de hoje, a revolta dos estudantes valeu mais pelo simbolismo das suas frases escritas nos muros – “É proibido proibir”; “Seja realista, exija o impossível”; “Decretado o estado de felicidade permanente” – do que por qualquer outra coisa.
Essa revolução não teve vítimas, o que, no final das contas, quer dizer que não foi, absolutamente, uma revolução (Judt, pág. 418).

REFERÊNCIAS
Eric Hobsbawn. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Tony Judt. Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Victor Sebestyen. Revolution 1989: The Fall of the Soviet Empire. New York: Pantheon, 2009.
Archie Brown. Ascensão e Queda do Comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

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