quinta-feira, 2 de julho de 2015

Paraenses, nordestinos e os peixes de Belém (1888)




Gustavo Maia Gomes

Na segunda metade do século 19, a “carestia” de alimentos se abateu sobre Belém do Pará, infelicitando, sobretudo, os mais pobres. Um sinal de alerta soou entre os governantes. Depois da terrível Cabanagem (1835-40), quando a turba revoltada derrubou o presidente da província, tomou o poder por um ano e matou milhares de pessoas, muitas delas ricas, ninguém queria cultivar insatisfações semelhantes.

O que fazer? Os relatórios presidenciais à Assembleia Provincial monotonamente expõem o problema, tentam entender suas origens e elaboram repetidas, porém sempre malogradas, tentativas de solucioná-lo. No mercado do Ver-o-Peso, em Belém, carne e peixes, os alimentos básicos, eram sempre caros e escassos. Em 1888, o ano sobre que me interessa falar, o problema já vinha se arrastando há décadas.

De carne verde, Belém era abastecida pelo Marajó. (Também vinha alguma charque do Sul brasileiro.) Transportar as reses da ilha até o continente custava tempo e dinheiro e, uma vez em terra, o gado tinha de ser abatido imediatamente, magro como chegava. Faltavam à cidade as condições mínimas de receber os rebanhos e permitir que eles descansassem por uns dias, recuperando o desgaste da viagem. Por isso, a carne vendida era pouca, cara e ruim.

O peixe também tinha oferta escassa. Surpreende um tanto, mas desconfio que isso se devesse à mania de tabelar preços sem levar em conta que a demanda do produto crescia com o afluxo de gente à cidade. Sujeitando os pescadores a condições insatisfatórias de remuneração, o governo inibia a oferta do pescado o que, por sua vez, gerava irresistíveis pressões altistas de preços, a despeito das tentativas policiais de contê-los.

Em 1888, Francisco José Cardoso Júnior, primeiro vice-presidente da província, fez publicar a tabela de preços que deveria prevalecer na feira livre do Ver-o-Peso, em Belém. A medida nada resolveu, claro, (a culpa é sempre de algum Cardoso), mas, por meio dela, ficamos sabendo os peixes que os paraenses comiam no final do século 19, assim como sua classificação por “qualidade" e respectivos preços oficiais.

Na tabela abaixo, reproduzo as informações. Para mim, a maior surpresa foi saber que, em fins do século 19, o maravilhoso Filhote era considerado de “segunda qualidade”. Os preços são, provavelmente, em "réis por quilo", embora a Fala de Cardoso não o esclareça. (O sistema métrico já havia sido introduzido no Brasil desde 1872, mas isso não quer dizer que fosse sempre adotado. No Nordeste, ele foi, inicialmente, recebido com um grande buruçu: a Revolta do Quebra-Quilos.) 

Fonte: Relatório do Vice-Presidente da Província do Pará, 1888
Mas, afinal, quão caros eram os peixes em Belém? É difícil avaliar preços tão antigos, mas posso fazer uma tentativa. Em 1888, o Pará recebeu grande quantidade de cearenses fugidos da “Seca dos Três Oitos”. (Isso já tinha acontecido em 1877 -– a “Seca dos Dois Setes”.) Aos retirantes, era oferecido trabalho, aproximadamente, a 40 mil réis por mês, no prolongamento da Estrada de Ferro de Bragança. Um professor de ensino médio ganhava em torno de 200 mil réis, cinco vezes mais que o flagelado nordestino.

Ou seja: em 1888, com 1% do que recebia na frente de trabalho, o retirante da seca podia comprar um quilo do melhor peixe. A Pescada, por exemplo, custava 400 réis o quilo. Era caro? Talvez sim, talvez não. Considerando que um quilo de Pescada Amarela custa, hoje, R$ 37 na Casa do Marisco (Belém) e que o salário mínimo atual é de R$ 788, deduz-se que o trabalhador de baixa qualificação terá de gastar quase 5% de sua remuneração mensal para comprar um quilo de peixe de primeira qualidade na capital paraense, em 2015.

Felizmente, para seus apreciadores, nesses 127 anos transcorridos desde 1888, o Filhote ganhou status -- e preço. (R$ 42/kg, na mesma loja já referida acima; talvez, um pouco menos, no popular mercado do Ver-o-Peso. Mesmo assim, uma fortuna.) Um trabalhador de salário mínimo que resolvesse consumir diariamente um quilograma de Filhote -- mesmo se não gastasse em mais nada -- veria o seu salário terminar quando ainda faltassem dez dias para o próximo pagamento.


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