quarta-feira, 5 de agosto de 2015

O censo das putas (Belém, 1921)

Gustavo Maia Gomes
Recorte de jornal não identificado datado de 15/julho/1921 pertencente à Hemeroteca Theodoro Braga — Arquivo Público de São Paulo. (Material colhido no site http://fauufpa.org/2013/08/27/1921-onde-colocar-as-putas/ e, segundo é dito ali, enviado pelo professor José Maria de Castro Abreu Júnior.)



Antônio Emiliano de Sousa Castro (1875-1951) foi deputado estadual e federal, governador do Pará (1921-25) e senador da República. Não deve ser confundido com seu pai, o Barão de Anajás (1847-1929), embora os dois tivessem o mesmo nome e ambos fossem médicos e professores. O mais velho foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará (1919) e seu primeiro diretor.
O filho tinha preocupação especial com a saúde pública. Já no seu primeiro ano de governo, armou um plano para controlar as doenças mais disseminadas no Estado. Dentre elas, as sexualmente transmissíveis -– ou “venéreas”, como se dizia então. Nesse mesmo sentido, em 1923, criou o leprosário de Igarapé-Açu, um hospital para tratar as vítimas de hanseníase apresentado como o mais antigo do Brasil.

DOENÇAS VENÉREAS
Na Mensagem enviada ao Congresso Legislativo do Estado, em 1921, Sousa Castro informa que “começou a funcionar o Instituto de Profilaxia das Doenças Venéreas, que instalei no prédio do antigo Instituto Pasteur, nesta capital. O prédio possui uma grande sala de espera e portaria, um consultório para homens, outro para senhoras, um terceiro para crianças e dois para meretrizes” (pág. 58).
“O Instituto funciona diariamente”, continua a Mensagem: “Todas as manhãs são atendidos homens, senhoras e crianças. As tardes são reservadas para as meretrizes” (pág. 58). O governador estava copiando experiências exitosas de Montevidéu e do Paraná. Mas, para que tudo funcionasse a contento, alguém precisava contar as putas. Tarefa para quem entende -- e não era o IBGE da época.
“Incumbiu-se o Sr. Dr. Chefe de Polícia de mandar fazer o recenseamento e identificação de todas as meretrizes desta capital, as quais seriam localizadas em um único bairro da cidade”, prossegue Sousa Castro, revelando outra parte do plano. “Possuiriam cadernetas de identidade e com estas se apresentariam ao Instituto de Profilaxia, para serem examinadas, uma vez por semana” (pág. 58).
O Instituto de Profilaxia cuidaria apenas da parte médica, “a Polícia se encarregaria do resto: localização, identificação, intimações e fiscalização das interditadas por doença, para não continuarem a exercer o meretrício. Estamos, portanto -– vangloria-se o governador -– com as funções bem definidas. Este [Instituto] só aceita como meretrizes as mulheres que se apresentarem com caderneta especial” (págs. 58-59).
Na Belém de 1921, não bastava ser puta, tinha de ter caderneta.

O CENSO
-- Mas, quem eram elas? Foi o censo, realmente, feito?
-- Sim, e os números estão na Mensagem de Sousa Castro ao Congresso Legislativo.
“O serviço médico-legal do Estado enviou ao Instituto de Profilaxia 525 cadernetas de meretrizes identificadas na Polícia, a fim de serem submetidas ao exame médico semanal, visando a profilaxia de doenças venéreas. Destas 525 mulheres, apenas 302 foram examinadas em julho, porque as cadernetas chegaram nos últimos dias do mês”. 

Eis o resumo dos dados obtidos, mantendo a forma em que foram apresentados:

Total de meretrizes examinadas
302
Das quais, são brasileiras
282
E estrangeiras (todas brancas)
20
Das brasileiras, eram brancas
70
Mestiças
178
Pretas
34
(Fonte: Relatório do Governador do Pará ao Congresso Legislativo do Estado, 1921, pág. 60)

As prostitutas nacionais eram dos seguintes estados

Pará
91
Amazonas
15
Maranhão
27
Piauí
14
Ceará
64
Rio Grande do Norte
15
Paraíba
25
Pernambuco
20
Alagoas
4
Sergipe
1
Bahia
5
Rio de Janeiro
1
São Paulo
1
(Fonte: Relatório do Governador do Pará ao Congresso Legislativo do Estado, 1921, pág. 60)

A estatística das meretrizes estrangeiras também consta do mesmo Relatório: “Russas, 6; austríacas, 2; rumaicas (sic), 1; portuguesas, 2; espanholas, 2; italianas, 2; americanas do Norte, 1; sérvias, 1; peruanas, 1.” Das meretrizes brasileiras, 53 eram casadas; 214, solteiras e 15, viúvas; 96 sabiam ler, 186 eram analfabetas. Das estrangeiras, 10 eram casadas; 6, solteiras e 4, viúvas. 15 sabiam ler, 5 eram analfabetas” (pág. 61).

PUTÓPOLIS
Um pouco de sociologia, para encerrar: 

(1) A maioria das prostitutas brasileiras tinha vindo de outros estados. Do próprio Norte ou, sobretudo, do Nordeste. Neste último caso, por herança das secas e da imigração de flagelados em busca de água e trabalho. Por sua vez, as estrangeiras, provavelmente, haviam chegado na fase áurea da borracha, quando o movimento em Belém de navios vindos da Europa e dos Estados Unidos era intenso.

(2) Dois terços (67%) das “meretrizes” estrangeiras sabiam ler; a mesma proporção, entre as brasileiras, era muito menor (34%). No caso dessas, o elevado analfabetismo não devia ser uma característica que as diferenciasse muito dos seus clientes. As estrangeiras,  por seu turno, mesmo sendo originárias, provavelmente, de camadas pobres, se haviam beneficiado da melhor oferta de educação em seus próprios países.

(3) Dentre as brasileiras, havia quatro solteiras para uma casada. Das estrangeiras, o número de casadas era maior que o de solteiras, atingindo metade do contingente examinado pelo Instituto de Profilaxia das Doenças Venéreas. Havia viúvas nos dois grupos de nacionalidade. Para essas, possivelmente, a prostituição havia sido o caminho encontrado para dar conta da vida, após a morte do marido.

(4) A maioria das prostitutas brasileiras era "mestiça" (63%). As "brancas" vinham em segundo lugar (25%) e as "negras" ficavam com os 12% restantes. A baixa proporção de meretrizes "negras" poderia estar refletindo a composição "racial" da população de Belém, ou ser um resultado da preferência dos clientes, sempre mais propensos a fazer amor com mulheres "brancas" ou "mestiças". É uma especulação, apenas.

Para não esquecer: fazia parte do plano concentrar todas as prostitutas de Belém em um único bairro, que bem poderia ter sido chamado Putópolis.

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