terça-feira, 2 de agosto de 2016

Nelson Rodrigues na Noruega

Gustavo Maia Gomes
Reeditaram "A Cabra Vadia: Novas Confissões", de Nelson Rodrigues (3ª edição, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2016). São crônicas de jornal, escritas em 1968, que ainda se leem com grande prazer. Nelson não apenas escreve maravilhosamente bem, ele ensina.
Algumas de suas tiradas são impagáveis; a impiedosa crítica da esquerda cai como uma luva nos dias de hoje. “Só o gênio fundaria uma fortuna juntando guimbas. Tirava o fumo das guimbas e fazia cigarros inteiros. Seu império nasceu de uma colossal pirâmide de tocos”, disse de Onassis, o milionário grego que casou com Jacqueline Kennedy. “A pior solidão é a companhia de um paulista”, escreveu, após reencontrar um amigo meio mudo vindo de São Paulo.
Em 1968, éramos todos ferrenhos adversários da ditadura militar. Somente Nelson Rodrigues, ou ele e meia dúzia de outros desviados, teria e teve a coragem de escrever assim: “Na confissão de ontem, falei de um dos pronunciamentos mais claros de d. Helder [Câmara]. Sem nenhum disfarce, declara: – Respeito aqueles que, em consciência, sentem-se obrigados a optar pela violência; não a violência fácil dos ‘guerrilheiros de salão’, mas a daqueles que provaram sua sinceridade com o sacrifício de suas vidas”.
Nelson reage: – “Não. Aí não está dito tudo. Provaram a sinceridade morrendo, por azar, e matando, por querer. Antes de morrer, Guevara matou. E, repito, morreu sem querer e matou querendo”.
Lá pelas páginas 140 do livro, encontro esta joia: “Getúlio Vargas foi o último grande enterro do Brasil. (...) Façamos um censo de possíveis defuntos. E chegaremos à conclusão de que ninguém, no momento, justificaria um grande enterro”. Conclui, num suspiro: “Como é árida a época que não consegue dar um defunto monumental”.
Ou, então, pouco adiante: “O Brasil tem 80 milhões de marxistas. Hoje, o não marxista sente-se marginalizado, uma espécie de leproso político, ideológico, cultural, etc. etc. Só um herói, ou santo, ou louco, ousaria confessar, publicamente: Meus senhores e minhas senhoras: Eu não sou marxista, nunca fui marxista. E mais: considero os marxistas de minhas relações uns débeis mentais de babar na gravata”.
Sou admirador de Nelson Rodrigues. Também gosto de escrever. Quem sabe, poderia homenageá-lo com uma crônica minha? Vou tentar. Atenção.
Serafina Trombose casou com Espiridião Catarinense. Os dois são de Branquinha, Alagoas. Têm um filho, Irineuzinho. O pai trabalha em Maceió. É cabo da PM. Queria morrer trocando tiros com bandidos, só assim seu nome sairia no jornal. Irineuzinho mora com ele; a mãe está há três anos na Noruega articulando negócios, sempre na iminência de se realizarem. Transformou altos objetivos profissionais em profissão.
Se lhe perguntam o que faz, responde: – “Persigo altos objetivos profissionais”. Por ora, reconhece, quando conversa em norueguês com suas amigas brasileiras, a maior vantagem de viver na Europa é que lá ela não é esposa de um cabo. Nem liga para o detalhe de que todas as suas despesas têm financiamento militar.
Acontece que o Irineuzinho vem crescendo, como costuma acontecer, e o pai enfrenta dificuldades dia-a-dia maiores em cuidar sozinho do filho, enquanto trava – ele, Espiridião – lutas mortais contra bandidos alagoanos. Queixa-se à mulher: – “Está ruim na escola. Vê fantasmas. Diz que também vai para a Europa”. Serafina ameniza, mas as pressões vindas do Hemisfério Sul não diminuem.
À beira do colapso, Espiridião dá seu lance final. Não aguenta mais. – “Está querendo que eu largue tudo e volte?”, pergunta Serafina. O marido não entende: – “Largar, largar...? Mas, o quê você está segurando aí?” Após um instante de hesitação, a mulher revela sua mais recente atividade profissional: ela e o sócio vão abrir uma empresa de segurar mandiocas. Ao que o marido retruca: – “E tem mandioca na Noruega?”
Nelson Rodrigues que o diga.

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