domingo, 2 de abril de 2017

Espiando o passado por um buraco de fechadura

Gustavo Maia Gomes


A fotografia anexa tem quase cem anos. Mostra meus avós Nominando Maia Gomes (1886-1966) e Josefa de Azevedo Bahia (1890-1954) e meu pai Mauro Bahia de Maia Gomes (1916-97) quando criança. Eu sempre a achei belíssima. Agora, examinando-a com cuidado, percebo que tem alto valor, além de estético, histórico e sociológico. Passo às considerações que a fotografia me sugere, depois de fornecer algumas informações de contexto.

(1) Não há indicação de local, mas, pelas andanças de Nominando, que consegui retraçar no livro O trem para Branquinha (ainda inédito), a foto deve ter sido tirada em Santa Luzia do Norte, um município próximo de Maceió e da região dos primeiros Maia Gomes. (2) O ano, deduzo da idade aparente de Mauro, é 1919, ou 1920. (3) Nessa época, Nominando, filho de senhor de engenho e dono de (poucas) terras, era promotor público na mencionada Santa Luzia.

Roupas, sapatos, cabelos

Todos os personagens da foto estão impecavelmente bem vestidos, mas a cena não parece ser a de uma festa ou solenidade. Ao contrário, a atitude de relaxamento dos três, em particular, dos adultos, sugere, com maior probabilidade, que se tratasse de um momento logo após o almoço, quando a família aproveitava para descansar – e conversar? – um pouco no terraço da casa. (O ambiente é quase rural; note-se, entretanto, que há uma tela de arame ao fundo e, depois dela, quase invisível, outra construção, que poderia ser uma pequena igreja.)

Se a hipótese de que o momento capturado pela fotografia não era de festa, mas de um dia comum, a elegância das pessoas retratadas se torna ainda mais notável. A começar pela de Nominando, de paletó e gravata, todo de branco, dos pés ao pescoço: sapatos, meias, calça, camisa, paletó. (A gravata, naturalmente, contrasta com a brancura toda em volta.) Devia estar de colete branco e de ceroulas da mesma cor, também, mas isso a foto não mostra. Cabelos bem penteados. Em seguida, Josefa: sapatos de salto alto, meias, vestido longo com ornamentos, colar, cabelos bem tratados e penteados. E, finalmente, o menino Mauro: sapatos brilhando, meias, uma espécie de macacão, camisa de mangas longas, cabelos fartos, soltos e bem penteados.

Era normal os proprietários de terras e/ou doutores trajarem-se dessa forma elegante, à época e local? Creio que sim, porém, em grau menor que o de Nominando. A indumentária de Josefa, entretanto, merece menção especial, pois as mulheres (como o constato em outras fotos comparáveis) se vestiam de forma quase relaxada, até mesmo, em ocasiões solenes ou comemorativas.

De onde vinha essa elegância? Minha avó viveu a maior parte da infância e juventude em Viçosa, Alagoas, que fica numa zona ainda “da Mata” (e canavieiro-algodoeira, na passagem do século XIX para o XX), porém, já de transição para o Agreste. Uma cidade próspera, mas interiorana. Seu pai era um comerciante rico. Nenhuma dessas duas pistas nos leva à elegância de Josefa na foto. Acho mais provável que ela tenha passado a se vestir bem por influência de Nominado.

Isso porque seu marido, a despeito das raízes rurais canavieiro-açucareiras, morou dois anos em Salvador e três no Recife, como estudante de Direito. Teve, portanto, convivência com hábitos urbanos que primavam pela sofisticação. Era escrevendo sonetos, ou artigos em jornais, fazendo citações em latim, assumindo cargos públicos importantes e se vestindo a rigor que os bacharéis residentes nas cidades iam marcando a diferença entre eles e seus pais e irmãos agricultores, senhores de engenho ou, mesmo, usineiros.

Foi graças a essas múltiplas armas que eles, os “doutores”, terminaram arrebatando o poder político da classe agrário-industrial. Ocuparam o Estado falando difícil e, como o Nominando da foto, trajando branco da cabeça aos pés. Ou outras cores, também formais. Nesse contexto, ainda mais se reforça a impressão de que a elegância de minha avó foi aprendida depois do casamento com o bacharel que prezava o bem vestir. (Uma característica que meu pai, também bacharel, assimilou direitinho.)

O bem-vestir de Mauro criança – este, sim, obra da mãe Josefa –, também o devia colocar acima da média dos meninos filhos da classe proprietária em seu tempo. Os cabelos longos e arrumados, particularmente, refletiam uma história específica que eu conheci por minha mãe, Maria Stella de Araújo Pedrosa (1917-2001). É que a sogra Josefa tinha os preconceitos de raça comuns à época e lugar e ficou muito contrariada com o fato de seu filho ter nascido escurinho e com os cabelos encaracolados, parecendo muito mais árabe que ariano. Aprendeu e aplicou mil receitas para clarear a pele e alisar os cabelos de Mauro. A cor não mudou nada, mas os cabelos de meu pai, pelo menos no momento da foto, efetivamente, ficaram parecendo lisos. Não durou muito a ilusão, contudo.

Cadeiras, rede, jornais

Meu avô está sentado em uma cadeira de balanço muito elaborada, como a foto mostra. É um modelo que, em versão simplificada, ainda hoje pode ser visto nas lojas de móveis antigos. Possuí ou usei mais de uma delas, enquanto solteiro ou casado, ao longo da vida. Mas, não com os ornamentos elaborados dessa. (Note-se, por exemplo, no encosto, logo acima da cabeça de Nominando.) Deve ser sintomático das relações entre os sexos daquela época e lugar minha avó estar sentada numa cadeira muito mais simples que a do seu marido. Não era de balanço e nem tinha ornamentos de qualquer espécie. O modelo, pelo pouco que a foto revela, também me parece ter sido bastante comum, até recentemente.

Há uma rede de dormir estendida embaixo da árvore (mangueira?), ao fundo da foto. Não sei se alguém já escreveu uma sociologia da rede no Brasil. (Luís da Câmara Cascudo tem, sim, livro com o título A rede de dormir: Uma pesquisa etnográfica.) A rede, uma das poucas coisas que os europeus chegados ao futuro Brasil e seus descendentes imediatos aprenderam com os índios (outras duas foram os caminhos para o Sertão e as formas de sobrevivência na selva amazônica), tem sido, desde as origens, intensamente utilizada. Até hoje, no Nordeste, não há casa de praia sem um par de ganchos esperando que alguém lhes estenda uma rede; no Norte, seu uso é ainda mais comum, sobretudo, nas áreas rurais.

Em Monte Verde, a fazenda de Nominando, tinha redes. Em Santa Luzia do Norte, idem. Em todos os lugares daquele tempo nordestino, havia redes esperando quem delas aproveitasse. Poucas coisas são mais prazerosas na vida que deitar na rede, depois do almoço, sob a sombra acolhedora de uma mangueira. E lá está ela, na fotografia centenária, para não me deixar mentir. Mas, nem Nominando, nem Josefa – ou, mesmo, Mauro –, deitariam numa rede vestindo aquela elegância toda. É por isso que a coitada ficou lá, esquecida. Não por mim, embora com cem anos de atraso.

Na foto, tanto Nominando quanto Maninha (ah, esqueci-me de dizer: Josefa detestava seu nome. Só admitia ser chamada Maninha) leem jornais. Como assim? Há cem anos, no interior de Alagoas, as pessoas liam jornais? Não me parece que fosse um hábito generalizado, mas era bastante difundido. Aos lugares próximos à capital, (caso de Santa Luzia do Norte), ou nas imediações das ferrovias (como em Murici, Branquinha, União dos Palmares, terras de origem dos Maia Gomes), os jornais chegavam no mesmo dia em que eram impressos. Nominando, bacharel em Direito, não passava sem ler jornais. Transmitiu este hábito ao filho Mauro e aos netos, Ivan e Gustavo.

Mas, voltando à foto, a sua mulher também lia jornais. Não sei com que frequência. Vem-me à lembrança, nesse contexto, que minha outra avó, Olga Dias Cardoso (1895-1978) também lia jornais (mais especificamente, um deles, O Semeador, órgão oficial da Diocese de Maceió), e trouxe do interior alagoano, onde o marido era dono de usina, para a sua casa na capital uma coleção enorme de revistas antigas – O Cruzeiro e Seleções do Reader’s Digest, sobretudo – que eu li, parcialmente, claro, com grande prazer 30 ou 40 anos depois da respectiva publicação. Sim, os proprietários de terras no Nordeste oriental canavieiro liam jornais, desde os últimos anos 1800, quando o trem chegou a Alagoas; ou os 1860, quando a primeira ferrovia começou a operar fora das cercanias do Recife, em Pernambuco.

Dos brinquedos de ontem às festas de aniversário de hoje

E os brinquedos de Mauro? Ele segura uma espécie de pandeiro, com seu batucador respectivo, e, em cima da cadeira, no canto inferior esquerdo da foto, há uma corneta. Talvez também possuísse soldadinhos de chumbo, comuns à época. (Segundo Gilberto Freyre, em Ordem e Progresso, popularizados depois da Guerra do Paraguai.) Devia estar satisfeitíssimo com seus três brinquedos. Que contraste com o mundo atual, onde as mães entulham os filhos de artefatos eletrônicos que, no mais das vezes, não tocam músicas como os tambores e cornetas de Mauro, nem enfrentam inimigos paraguaios em guerras leias, como seus soldadinhos de chumbo.

Dos parabéns anuais, nem falar. Embora, sobre eles, nada nos diga a foto, eram simples, com certeza. Se, nas suas festinhas de aniversário, houvesse um bolo, dois confeitos e bastante espaço para correr, não só ele, Mauro, mas todos os meninos e meninas convidados viveriam momentos felizes. Hoje em dia, em contraste, sempre que vou a um aniversário de criança, fico estupefato com as transformações dos tempos. Para se contentarem com suas festas, os meninos e meninas precisam ter, nelas, recreadores, palhaços, bandas de músicas, parques de diversões especialmente montados, bolos, chocolates, doces e distribuição de prêmios. Além dos cinco mil balões que custaram uma nota para encher e que serão, devidamente, estourados ao fim da festa. Já os adultos, não podem passar, nessas mesmas festas, sem farta distribuição de cerveja, uísque, comedorias várias – muitas vezes, jantares completos. Quando os pais do aniversariante ainda se acham obrigados a botar alguma música para berrar nos ouvidos dos convidados, aí a desgraça fica completa.

Com dois aniversários desses, Nominando teria gasto três anos de seus modestos vencimentos como promotor, depois juiz de Direito. Desconfio, por isso, que estamos vivendo uma era onde a bobagem assumiu o comando. E a ditadura dos meninos e meninas (da qual a festa exorbitante não passa de evidência menor) é somente o primeiro tempo da dominação sem dó nem piedade dos pais pelos filhos, que apenas terminará com a morte de um dos dois.

Poste escrito (como diria Millor Fernandes)

A foto que comentei ficou guardada nos baús de meus avós, de meus pais, e de meu irmão Ivan (e sua mulher, Elisa) durante quase cem anos. Que bom que ela tenha sobrevivido, para nos permitir espiar o mundo de um século atrás, nem que fosse por um buraco de fechadura.

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