terça-feira, 19 de junho de 2012

Lulaluf ou Ribbentrop-Molotov?






Gustavo Maia Gomes
Os fatos e personagens na história do mundo ocorrem duas vezes: a primeira, como tragédia; a segunda, como farsa.
(Karl Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte)
Não serei o primeiro a dizer, mas, assim mesmo, digo: o acordo selado ontem (18/06/2012) entre o ex-presidente Lula e o notório Paulo Maluf, em favor do candidato do PT a prefeito de São Paulo, tem tudo para entrar na história. Isso porque, num sentido importante, ele fecha um círculo. De agora em diante, são aliadas do Partido dos Trabalhadores todas as forças políticas conservadoras, reacionárias, oligárquicas que possuem alguma expressão nacional ou regional neste país. 
Essas forças estão agregadas, principalmente, no PMDB, e representadas, em se tratando de pessoas, por líderes como José Sarney, Renan Calheiros, Fernando Collor e pelo próprio Maluf, que também compartilham, além do conservadorismo, mais duas características: (a) têm as imagens manchadas por recorrentes acusações de corrupção; e (b) em algum momento, cada uma delas foi, mais do que adversária, feroz inimiga de Lula e do PT.
Acordos de conveniência entre inimigos políticos não são novidade na história. O problema é que, com raras exceções, eles começam bem, mas terminam mal. Apreciem os três exemplos a seguir.
 
1. Napoleão e o papa Pio VII
Napoleão era primeiro cônsul da República francesa quando decidiu pacificar as relações entre o estado e a igreja Católica. Embora pessoalmente detestasse o clero, ele calculou que consolidaria mais facilmente seu poder se evitasse o confronto. Por sua vez, o papa Pio VII deve ter tido pensamentos simétricos: se se entendesse com os novos poderes terrenos, seria deixado em paz e poderia até obter outras vantagens.
Em 1801, os dois inimigos assinaram um tratado, a Concordata. Naquele momento, cada lado achou que havia feito um bom negócio. A Igreja, porque o estado francês assumiu o custo financeiro de pagar os salários dos padres; Napoleão, porque ganhou o poder de nomear os bispos e ter reconhecidos como deveres sagrados – que deveriam ser apregoados nas missas – o pagamento de impostos e a prestação do serviço militar.
O acordo terminou oito anos depois de assinado, com o papa excomungando Napoleão e este, em represália, mandando prender Sua Santidade. 
2. Ribbentrop e Molotov
Para dar uma ideia de quanto Hitler odiava o regime soviético, basta dizer que ele considerava o comunismo uma estratégia dos judeus para subjugarem a Alemanha e o mundo. Stalin, por seu turno, nutria sentimentos equivalentes a respeito do nacional-socialismo. Apesar desse ódio mortal e recíproco, os dois ditadores, representados pelos ministros Ribbentrop e Molotov, firmaram, em 1939, um pacto de não agressão.
O pacto foi um ato de traição de Stalin aos comunistas de todo o mundo, mas trouxe benefícios imediatos aos dois países. Por um lado, a União Soviética habilitou-se a incorporar vastas porções de território. (Uma das cláusulas secretas do acordo previa, exatamente, a partição da Polônia entre as duas potências.) Por outro, Hitler mantinha os russos quietos, enquanto tratava de consolidar suas posições na Europa ocidental.
Deu tudo errado: em junho de 1941, Hitler invadiu a União Soviética e, seis meses depois, o inverno russo e o Exército Vermelho começaram a derrotar a máquina de guerra alemã. Os russos e seus aliados dos países satélites também pagaram um preço altíssimo: mais de vinte milhões deles foram mortos até a rendição de Berlim.
3. Vargas e Prestes
“Jamais apoiarei sua candidatura [a presidente da República]”, disse Luís Carlos Prestes a Getúlio Vargas, quando os dois se encontraram, pela primeira vez, em setembro de 1929. E deu as razões: “não acredito que o senhor, um político reacionário, latifundiário, queira fazer um movimento em benefício do povo”. Vargas, por seu turno, não tinha nenhuma admiração pelo seu interlocutor que vivia, então, em exílio na Argentina: “a luta revolucionária está reduzida a simples correrias de cangaceiros”, dissera ele, anos antes, ao se referir depreciativamente à Coluna Prestes.
Mesmo perdendo as eleições, Getúlio chegou à presidência, em 1930, liderando a revolução que depôs Washington Luís. Cinco anos depois, eclodiu a chamada Intentona Comunista, liderada por Prestes. A tentativa de golpe foi dominada em poucos dias e Prestes, preso, juntamente com sua mulher Olga Benario, uma judia alemã. Mesmo Olga estando grávida, Getúlio autorizou sua deportação para a Alemanha nazista, onde qualquer um podia prever que ela morreria (como morreu) poucos meses depois, em um campo de concentração.
Prestes permaneceria enjaulado pelo regime getulista por mais oito anos. Mas, quando saiu da prisão, fez o seu pacto Ribbentrop-Molotov, apoiando o governo Vargas, após este declarar guerra à Alemanha. Até participou de comícios ao lado do arquiinimigo, como demonstra uma das fotos apensas a este texto.
Como os outros, este namoro de inimigos terminou mal. O apoio do antigo líder tenentista não evitou que Getúlio perdesse a presidência. Prestes, por sua vez, em seguida à redemocratização de 1946, tornou-se senador. No mesmo ano, entretanto, o Partido Comunista foi, novamente, declarado ilegal e todos os parlamentares eleitos pela sigla, aí incluído Prestes, tiveram seus mandatos cassados. Getúlio não pôde ou, mais provavelmente, não quis, defender o antigo inimigo e recém-aliado.
4. Lula e Maluf
Até aqui, tivemos história. A partir deste ponto, entro na ficção. Ou, quem sabe, na história que já está sendo escrita, mas ainda não terminou de sê-lo.
Uns poucos minutos a mais de propaganda eleitoral na TV não foram suficientes para evitar que Fernando Haddad perdesse a eleição em São Paulo ainda no primeiro turno. Isso não surpreendeu. Surpreendente, sim, foi a baixíssima votação do PT – um percentual bem menor que o tradicionalmente alcançado. Ficou claro que Maluf pode ter atraído uns poucos eleitores, mas afugentou um número muito maior deles.
Contribuiu para a derrota de Haddad a falta de empenho na campanha eleitoral de velhos líderes da esquerda, cujo capital político havia sido construído dentro do PT nos anos em que este partido, ainda na oposição, parecia se guiar por princípios de consciência social, virtude e idealismo. É claro que o comportamento desses líderes – Marta e Eduardo Suplicy, Hélio Bicudo, Aloísio Mercadante, a quase-candidata a vice-prefeita Luísa Erundina (cuja carreira começou no PT, embora tivesse, anos antes de 2012, trocado de partido) – refletiu, mas, ao mesmo tempo, intensificou a desilusão dos eleitores com o pragmatismo exagerado de seu chefe maior, o ex-presidente Lula.
Na década seguinte, o país assistiu o Partido dos Trabalhadores definhar a cada ano, a ponto de seus dirigentes proporem a fusão com o PNT, Partido dos Não-Trabalhadores, de Paulo Maluf. (Mesmo estando preso nos Estados Unidos, Maluf tinha mais votos do que Lula.) Nisso, ele repetiu a trajetória do PFL/DEM e do PSDB, que haviam sido fortes, enquanto a conjuntura lhes fora favorável, mas que, desprovidos de qualquer matriz ideológica, morreram de inanição, quando os ventos mudaram.
Felizmente, para o Brasil, a morte do PT (e, antes dela, as do PFL e do PSDB) não significou o enterramento das bandeiras de pureza ideológica, seriedade, honestidade, respeito à coisa pública, transformação social responsável. Estas continuaram a ser proclamadas, só que por outros atores, agrupados no que veio a se chamar de Aliança Liberal.
(Opa, fiz confusão: Aliança Liberal é coisa da revolução de 1930!)
REFERÊNCIA
As frases atribuídas a Getúlio Vargas e a Luís Carlos Prestes foram retiradas do excelente livro de Lira Neto, Getúlio, 1882-1930: Dos anos de formação à conquista do poder. (São Paulo, Companhia das Letras, 2012.) Trata-se do primeiro volume de uma prometida trilogia que, certamente, comporá, quando finalizada, a melhor biografia de Getúlio Vargas já escrita. Recomendo fortemente a leitura do texto de Lira Neto, também autor de uma ótima biografia do Padre Cícero.
Este artigo está sendo publicado, simultaneamente, em
(19/06/2012)
 


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