terça-feira, 23 de julho de 2013

A seca nordestina, segundo o Dr. Pangloss

Pangloss é um dos dois personagens centrais de “Cândido, ou o Otimismo”, devastador conto filosófico escrito por Voltaire (1694-1778). Seguidor de Leibniz, o doutor sustentava que tudo o que nos acontece “é sempre o melhor, no melhor dos mundos possíveis”. Tragédias europeias contemporâneas, como a Guerra dos Sete Anos (1756-63) e o Terremoto de Lisboa (1755), jamais abalariam o otimismo panglossiano.
Mas o que Pangloss tem a ver com a seca nordestina?
Eu achava que nada, até presenciar, na manhã do dia 18 de julho, a cerimônia inaugural do XIX Fórum Banco do Nordeste de Desenvolvimento, em Fortaleza. Trata-se de evento realizado em conjunto com o encontro regional da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec). O Fórum deste ano teve como tema “Semiárido Brasileiro e o Desenvolvimento Regional”.
Num ambiente festivo, com água em abundância, usaram da palavra o presidente do Banco do Nordeste, Ary Joel Lanzarin; o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho; e o deputado federal (PT-PE) Pedro Eugênio Cabral. Cada um deu seu recado, com um foco principal: Lazarin, no banco; Bezerra Coelho, nas ações do governo no Semiárido; Pedro Eugênio, na economia brasileira, em geral.
Foi quando descobri que o Dr. Pangloss tem muito a ver com a seca nordestina.
SECA, QUE SECA?
Todo mundo está dizendo que esta seca é a pior dos últimos quarenta, cinquenta, sessenta anos. Do ponto de vista climatológico, pode ser; sob o aspecto de sofrimento humano, dificilmente. Escasso consolo: ser campeão ou vice num torneio de horrores pouca diferença faz. Voltarei a este ponto. Antes, dei uma passada nos jornais, para trazer notícias da seca. Selecionei umas poucas:
“Por causa das intempéries climáticas, a atividade agrícola [do RN] foi toda atingida, restringindo drasticamente os níveis da produção” (22/3/13). “Prejuízo com seca no Nordeste pode superar R$ 12 bi” (23/5/12). “Em alguns estados, 70% do rebanho foi [sic] dizimado” (6/5/13). “O rebanho de gado do semiárido está morrendo ou sendo vendido” (20/12/12). “Mais de um milhão de cabeças de gado morreram em todo o estado” [Bahia] (6/5/13). “Com a seca, criadores de PE já perderam 960 mil cabeças de gado” (22/4/13).
Esse é o quadro do “Semiárido”. E o que tinham a dizer as autoridades responsáveis pelo “Desenvolvimento Regional”? Afinal, “Semiárido e o Desenvolvimento Regional” era o tema do XIX Fórum Banco do Nordeste de Desenvolvimento.
CÂNDIDO, OU O OTIMISMO
As autoridades tinham a dizer coisas maravilhosas. Dou alguns exemplos. Como as cito de cabeça, as palavras entre aspas podem não corresponder exatamente ao que foi pronunciado. Todos falaram de tudo, dizendo a mesma coisa, de modo que não atribuo um autor específico a cada frase. Mas as citações captam o essencial das mensagens transmitidas. Eis algumas delas, seguidas de meus comentários:
“O Banco do Nordeste está atuando vigorosamente. Nossas operações de empréstimos subiram 63%, neste primeiro semestre de 2013, em comparação com o mesmo período do ano anterior”.
Enquanto isso, metade do rebanho bovino morria. De onde se conclui que se o crédito tivesse crescido ainda mais não teria sobrado um boi em pé no Agreste e Sertão nordestinos. Ocorre que os rebanhos são (eram), em sua maioria, pertencentes a pequenos pecuaristas, que haviam levado décadas para acumular aquela relativa riqueza. Sua perda é uma tragédia, pela qual o BNB é corresponsável. Uma tragédia bovina, em primeiro lugar. Humana, em segundo.
“Não houve saques a cidades, nem hordas de flagelados. A rede de proteção social [leia-se, Bolsa Família] funcionou”.
Sem dúvida, este é um fato positivo. Mas, no passado, nos envergonhávamos por recorrer às “Frentes Temporárias de Trabalho” para obter o mesmo resultado. Os governos eram criticados (pelo PT, inclusive) por só terem respostas emergenciais e assistencialistas para as estiagens. Havia, inclusive, recorrentes denúncias de que as Frentes Temporárias de Trabalho alimentavam a “indústria da seca”. Agora, o mesmo PT se orgulha do Bolsa Família. Mas, o que é o Bolsa Família, se não uma nova Frente, não temporária, nem de trabalho? Uma frente que alimenta não a indústria da seca, mas a indústria do voto. Nesse sentido, se antes a corrupção se instalava a cada três anos, agora acontece em sessão contínua.
“O Ministério da Integração está implementando no Semiárido o Programa 1, o Programa 2, o Programa 3, o Programa 4, o Programa 5...”
Outros programas, do estoque inexaurível, só não foram relacionados porque o ministro teve de deixar o recinto para receber a Presidente da República que, em visita ao Ceará, naquele dia, anunciaria mais dois ou três novos programas. À abundância das ações governamentais se contrapõe a penúria agravada pela seca dos que habitam o Semiárido, num enredo sempre igual que parece não ter fim. O ministro faz bem em anunciar tantos bem-feitos, mas a verdade é que seus programas se encontram nos jornais. Fora daí, ninguém sabe onde eles estão.
“Estamos preparando a segunda fase da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) e já ouvimos todos os estados e muitos municípios”.
A II PNDR é considerada tão importante (pelo Governo) que foi objeto de outra conferência comemorativa, na mesma manhã. Tomara que ela seja importante, mesmo. Porém, uma expectativa mais racional apontaria para outra direção. Pois, se a I PNDR foi a mistura do vácuo com a falta de ar, a II PNDR tende a ser a junção do nada com o inexistente. Menos no discurso oficial, claro. Sintomaticamente, a principal linha de defesa da II PNDR baseou-se no número de pessoas ouvidas durante sua elaboração. Antes de sermos avisados, tínhamos a impressão de que defender uma política com base no número de pessoas ouvidas ficava bem em relatório de ouvidor, não em pronunciamento de ministro responsável por evitar que o gado dos pequenos pecuaristas fosse dizimado pela avalanche de empréstimos do BNB.
O PARAÍSO AQUI E AGORA
As duas citações a seguir – que refletem o pronunciamento do deputado Pedro Eugênio –, não se referem ao Semiárido, mas compartilham do clima triunfalista, autocongratulatório, bem próprio a um evento realizado em Fortaleza, em meio a uma seca que, sem ter, ainda, terminado, já dizimou 50% ou 60% do rebanho bovino regional, além de toda a produção agrícola não irrigada.
“Claro que o Brasil não começou com Lula, como às vezes se diz... [Mas foi quase assim]”.
Ninguém de bom senso diria que o Brasil começou com Lula, como até mesmo o deputado Pedro Eugênio finge concordar. Mas algumas pessoas de bom senso estão começando a temer que o Brasil termine com Lula e com o exército de bajuladores que ele colocou em todos os postos de direção deste país.
“A economia brasileira não tem nada a ver com a européia. Estamos prontos para continuar desfrutando a era de prosperidade [criada pelos governos do PT]”.
Foi muito reconfortante saber que estamos entrando no Paraíso. Pois, até ouvir os esclarecimentos do deputado, 190 milhões de brasileiros, menos um, pensavam que estivéssemos entrando no terceiro ano seguido de estagnação econômica, com uma forte probabilidade de a inflação reiniciar sua viagem à estratosfera. Também pensávamos que a culpa por este descalabro fosse do mesmo governo que o deputado tanto elogia. Felizmente, estávamos todos errados.
EPÍLOGO
Quero informar ao leitor que tudo o que está escrito aqui foi dito em público pelo autor deste artigo, na sua palestra pronunciada à tarde do mesmo dia 18/7/13, no XIX Fórum Banco do Nordeste de Desenvolvimento. (Minha participação no próximo Fórum não está confirmada.) Infelizmente, quando isso ocorreu, o ministro e o deputado já tinham se ausentado do recinto, com vistas a serem fotografados junto à Presidente da República, anunciando novos programas salvadores da humanidade. Mas o presidente do Banco do Nordeste estava presente, fato que foi registrado por duas vezes em meu pronunciamento.
Minha mensagem àquele público foi a mesma que tentei passar neste texto: não importa se a presente seca é a pior ou a “menos pior” dos últimos sessenta anos. Em qualquer hipótese, ela tem sido um escândalo. Utilizá-la como pretexto para auto-elogios governamentais a transforma em um escárnio. 

Gustavo Maia Gomes

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