segunda-feira, 3 de outubro de 2016

As geografias discrepantes de dois alemães desgarrados (Século XIX)

Gustavo Maia Gomes

Doroteia Kruss (1840-c.1902)
A criança no colo é, provavelmente,
Olga Dias Cardoso (1896-1978). (Foto
do acervo de Heloisa Pedrosa, enviada
por seu genro Bento Luiz Silva)

Christian Frederick William Kruss
(1833-95),  em foto colhida no site
My Heritage / 

The Kruss Family Website.


Meu tetravô (nem sei se a palavra existe), Marcus Kruss, nasceu em Burg auf Fehmarn, no dia 20/12/1798. Morreu ali mesmo, em 31/5/1886. Trabalhava como Lichtgieber und Polizeidiener. O que era isso? Polizeidiener, OK, é policial, mas a melhor tradução que consegui para Lichtgieber foi “cortina de luz”, que não parece ser uma profissão. A pequena ilha de Fehmarn, no Mar Báltico, era, à época, território alemão. (Ou dinamarquês, segundo algumas fontes.) [1]
Marcus Kruss casou-se duas vezes. A primeira (em 1820), com Christina Margaretha Wendt (1795-1823). Mas, Christina morreu apenas três anos depois. Pelo tempo que foi casada, devem ter sido dela apenas duas das dez filhas e filhos do policial cortina de luz: (i) Amalie Maria Christina Kruss (Leiden por casamento) e (ii) Gertrude Kruss (Kukuk, por casamento). Não sei os anos e locais de nascimento e morte delas.
CASAMENTO
A segunda mulher (1829) de Marcus Kruss, minha tetravó, foi Catherina Dorothea Prussing (24/10/1797-22/3/1873), nascida em Orth, na mesma ilha de Fehmarn, localidade distante apenas 14,5km de Burg auf Fehmarn. Catherina morreu na mesma ilha onde, aparentemente, vivera toda a vida. O marido, ainda menos inclinado a mudanças, parece nunca ter saído da minúscula cidade em que nascera (12.000 habitantes, em 2013.)
Com Catherina Dorothea Prussing, Marcus Kruss teria mais oito filhos (todos com sobrenome Kruss): (iii) Magdalena Wilhelmina (Krohn, por casamento); (iv) Jacob; (v) Christian Frederick William (6/1/1833-27/11/1895); (vi) Carl Heinrich; (vii) Daniel Gottlieb; (viii) August Carl Ludwig; (ix) Anna Dorothea, de quem não há registro de que se tenha casado; (x) Dorothea Elise Kruss (Quanz), nascida em 1840, décima filha de Marcus, oitava de Catherina Dorothea. Minha trisavó.
Enquanto Marcus e Catherina viveram e morreram no mesmo lugar, uma ilha pacata, que destinos geograficamente tão diferentes teriam seus filhos Christian Frederick William Kruss e Dorothea Elise Kruss (Quanz por casamento)! Ambos nascidos em Burg auf Fehmarn, Alemanha ou Dinamarca, um foi parar em Welshmans Reef, Vitória, Austrália; a outra, em Santa Rita, Paraíba, Brasil. Isso, aí pelos anos 1860-70, mais ou menos.
PARAÍBA
Dorothea Elise Kruss Quanz – ou Doroteia Elizabeth, como seu nome aparece aportuguesado nas Memórias da trineta Heloisa Pedrosa – nasceu no dia 25 de junho de 1840, no mesmo Burg auf Fehmarn onde Marcus Kruss viveria toda a vida. Talvez não fosse o melhor lugar do mundo para uma moça arranjar casamento. Tornando as coisas mais difíceis, já com 25 anos de idade e ainda solteira, a jovem não era bonita. (A julgar pelos retratos que se conservaram, não, mesmo.) Mas, tinha padrinhos. Um deles, Henry Leiden, industrial do ramo cervejeiro, era casado com a meio-irmã de Dorothea Elise, Amalie Maria Christina Kruss, filha mais velha do primeiro casamento de seu pai.
O cervejeiro prussiano Henry Joseph Leiden fundara e era dono de fábricas no Rio de Janeiro (desde 1842; ele é considerado o pioneiro desta indústria no Brasil) e no Recife (pelo menos, desde 1866). E era tio de Henri Quanz, alemão da Baviera, que perdera os pais ainda criança e fora morar com parentes em Paris. O que Henri Quanz fazia na França, não sei. Mas ali se casou com uma francesa, teve duas filhas (Ana e Valentina) e, de súbito, a mulher morreu. 
Estamos, nesta altura da narrativa, em um ano próximo a 1866. Leiden tinha interesses industriais no Brasil, mas morava na Europa. Precisava, especialmente, de alguém confiável para administrar a fábrica do Recife. Convenceu o sobrinho recém-viúvo Henri Quanz a vir residir em Pernambuco. E lhe arranjou a noiva que queria “colocar”: sua cunhada (dele, Henry Leiden) Dorothea Elise Kruss.
Em 1868, Quanz brigou com Leiden e o casal Henri-Dorothea se mudou para a Paraíba, onde os dois viveram o resto das vidas. Sua filha Josefina Kruss Quanz casou-se com Francisco Dias Cardoso Filho, engenheiro vindo do Rio de Janeiro para a Paraíba e com ele teve cinco filhos: Raul, Olga, Henriqueta, Corina e Maria Helena. Conheci e convivi com todos eles. Não tenho notícia de que minha trisavó Doroteia Elizabeth, na versão aportuguesada de seu nome, tenha, jamais voltado a Burg auf Fehmarn, ou à Alemanha, ou à Dinamarca, ou à Europa.
AUSTRÁLIA
A narrativa feita até aqui é, em suas linhas gerais, conhecida dos descendentes de Dorothea Elise (ou Elizabeth) Kruss. Mas há outra ponta da história inteiramente desconhecida, que descobri recentemente. É que o irmão de Dorothea, Christian Frederick William, sete anos mais velho do que ela, também fez uma viagem transoceânica da qual jamais retornaria. 
Foi morar na Austrália, num lugar chamado Welshmans Reef, a 114 km de Melbourne, no Estado de Vitória. Não tenho a menor ideia (ainda) do que ele terá ido fazer lá. Será que Henry Leiden também tinha interesses comerciais na Austrália? Não sei. O fato é que Christian foi morar naquele lugar incrivelmente distante.
Deu-se, então, o duplo paradoxo: enquanto seus pais, Marcus Kruss e Catherina Dorothea Prussing, nunca saíram do pequeno lugar onde haviam nascido, entre a Alemanha e a Dinamarca, dois de seus filhos foram bater com os costados em fins-do-mundo extremamente distantes não apenas de Fehmarn, mas, sobretudo, um do outro: Dorothea, no Brasil; Christian, na Austrália.





[1] Boa parte das informações deste artigo foi colhida em "My Heritage / Kruss Family Website". (Alguns dos dados são divulgados apenas para os assinantes do site, o que foi meu caso, por um breve tempo.) As Memórias de Heloisa Pedrosa, editadas por Martha Pedrosa Resende, também foram utilizadas. Umas poucas informações são resultado de pesquisas anteriores feitas, sobretudo, na coleção de jornais da Hemeroteca Brasileira Digital da Biblioteca Nacional.

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