segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

As Ligações Perigosas

Gustavo Maia Gomes


Choderlos de Laclos publicou o seu romance Les liaisons dangereuses em 1782. Se o tivesse escrito no Brasil de hoje, as ligações perigosas de que fala bem poderiam ser aquelas que se estabeleceram entre juízes e deputados. Perigosas para o país, bem entendido; muito lucrativas para eles.
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Duas notícias se destacaram na semana passada – uma nacional, outra, pernambucana, mas com repercussões que as ampliarão muito no tempo e no espaço:
Ministro beneficiou a si próprio ao paralisar inspeção. O ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski está entre os magistrados do Tribunal de Justiça de São Paulo que receberam pagamentos sob investigação do Conselho Nacional de Justiça. (Folha de São Paulo, 21/12/2011).
Assembleia está distribuindo milhões. A Assembleia Legislativa de Pernambuco decidiu pagar auxílio-moradia [retroativo a 1997] a diversos deputados e ex-deputados. O valor pode chegar a mais de R$ 1 milhão por deputado (ou ex-deputado). (Blog Acerto de Contas, 22/12/2011)
Aparentemente desconexas, as duas notícias abrem uma fresta sobre algumas das ligações que se estabeleceram entre os integrantes do Judiciário e a classe política, no Brasil contemporâneo. Senão, vejamos:
No caso dos juízes, os pagamentos foram feitos “com base em direito reconhecido em 2000, quando o STF decidiu que todos os magistrados do País deveriam ter recebido aquilo que, durante alguns anos da década de 90, foi pago apenas aos parlamentares”. (Portal Terra, 23/12/2011).
No caso dos deputados, o presidente da Assembleia “[Guilherme] Uchoa lembrou que o pagamento [do auxílio-moradia] também está sendo recebido pelos tribunais de Justiça e de Contas e pelo Ministério Público de Pernambuco” (Band.com.br, 25/12/2011)
Ou seja, para quem não entendeu bem: os juízes podem receber porque os deputados recebem; os deputados podem receber porque os juízes recebem.
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É preciso dizer que nem sempre juízes e deputados tiveram as regalias atuais ou ganharam a exorbitância que ganham hoje. Sem recuar muito na história, durante o regime militar (ou seja, de 1964 a 1985), ambas as “categorias”, além de viverem atormentadas pelo espectro da demissão arbitrária ou cassação de mandatos, recebiam pouco dinheiro. Os donos da pátria eram os militares de alta patente, que abocanhavam os gordos salários nas empresas estatais respaldados na sua competência em dar tiros de canhão.
A partir de 1985, tudo isso mudou. No seu período de domínio, os militares se sustentavam escorados no crescimento econômico (que gerava ganhos pecuniários, mesmo se desigualmente distribuídos, para todos os brasileiros) e na repressão (que inibia os insatisfeitos, permanentemente ameaçados de prisão, morte ou tortura). Portanto, as forças que se organizaram para derrubá-los tinham de buscar outros pontos de apoio. Se houvesse crescimento, ótimo; mas a repressão estava fora de pauta. As palavras de ordem que, no novo regime, abririam as portas para conquistar e manter o poder seriam “eleições diretas”, “participação”, “estado de Direito”, “autonomia e equiparação dos poderes” e semelhantes.
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Em tal ambiente, uma aliança logo se formou entre deputados (e senadores...) e juízes (e desembargadores, procuradores...). Os primeiros faziam as leis que criavam regalias para eles mesmos; os segundos garantiam a constitucionalidade dessa nova legislação e, apelando para a “equiparação dos poderes”, estendiam a si próprios os benefícios. Ou então, numa variante do mesmo processo, os deputados e senadores instituíam as leis encomendadas pelo Judiciário para beneficiar seus integrantes, as quais eram, posteriormente, interpretadas como se aplicando também aos parlamentos.
Enquanto isso, o Executivo (à exceção de setores muito específicos) era -- e ainda é -- mantido como refém: se esboçasse reagir, não teria uma só proposta acatada no Congresso, nem as contas aprovadas, nem a tranqüilidade de viver sem a ameaça de uma coerção judicial. Ou, quem sabe, os deputados e senadores criariam uma CPI (para os menos informados: Comissão Parlamentar de Inquérito), ou uma ameaça de impeachment.
Esse processo teve uma dimensão macroeconômica graças à qual os privilégios criados no papel puderam ser convertidos em dinheiro de verdade na conta dos beneficiários. Pois a “autonomia dos poderes” foi traduzida pelo Legislativo e Judiciário como significando que eles (embora tenham responsabilidade zero pela arrecadação de impostos) podem fixar livremente suas próprias despesas, obrigando o Executivo a pagá-los pelo preço que eles pensam valer. Ninguém precisa ser muito sábio para deduzir que receitas ilimitadas logo seriam transformadas nas remunerações astronômicas de deputados, senadores, juízes e similares. Ou que, extorquido pelos dois outros poderes, ao Executivo restaria apenas aumentar impostos, cortar investimentos, piorar a qualidade dos serviços públicos e comprimir os salários de seus próprios servidores. Com todas as consequências nefastas que cada uma dessas medidas, inevitavelmente, traria. E trouxe.
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Uma frase muito repetida na década de 1950 era “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Em 2011, saúvas são as relações perigosas que se estabeleceram entre juízes e deputados, cujos “direitos” aumentam na mesma magnitude em que os nossos diminuem. E nem se falou, neste artigo, em corrupção, outro tema (com perdão do duplo sentido) "riquíssimo".
Infelizmente, foi mais fácil acabar com as formigas do século XX do que será extinguir as saúvas de hoje.


Este artigo será publicado, simultaneamente, em http://www.blogdatametrica.com.br, http://www.econometrix.com.br e http://www.gustavomaiagomes.blogspot.com (26 dez 2011)



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