Gustavo Maia Gomes
O subtítulo desta crônica
repete o bordão do macaco-filósofo Sócrates, personagem do programa Planeta
dos Homens (1976/82), da Rede Globo. Intrigado com as contradições dos humanos,
Sócrates não parava de apontá-las, nem de fazer perguntas difíceis.
Mas nunca dava tempo para a
resposta, atropelando o ouvinte com um “não precisa explicar, eu só queria entender”. Suas observações,
mais agudas que as dos homens com quem dialogava, invariavelmente, obrigavam estes a
admitir: “O macaco tá certo!”
O que poderia incomodar o
símio pensador, no Brasil de hoje? Sem pretender atingir as alturas da sua sabedoria,
ofereço uma lista de temas recentes que, possivelmente, mereceriam a macacal reflexão.
De acordo com a
Constituição, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza. Mesmo sabendo disso, os ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram
que a adoção de cotas raciais em instituições de ensino é “constitucional”.
Mas cotas são, também, discotas, pois a quantidade de estudantes
não irá aumentar apenas por causa daquela decisão judicial. Quando 20% dos
lugares são preenchidos pela entrada facilitada de uns, sobram apenas 80% das vagas
que havia antes -- e o direito de estudar de todos os outros fica comprometido.
A decisão do STF implica,
portanto, em reconhecer que, quando se trata de disputar uma vaga em
instituições de ensino, nem todos são iguais perante a lei. Ou seja, para aprovar as cotas, os
ministros julgaram inconstitucional a própria Constituição. Se fosse futebol, um torcedor mais esperto perceberia que o time havia jogado para agradar a plateia.
Não precisa explicar, eu só
queria entender.
CPI DO CACHOEIRA
Cassado por denúncias de
corrupção, Fernando Collor voltou a Brasília, onde é agora guardião da
moralidade. Em seu favor, deve ser dito que, apesar de há longo tempo manter a
moralidade sob guarda, ele jamais pediu resgate por isso.
Com ordem de prisão vigente
em 188 países, por, supostamente, desviar dinheiro público, Paulo Maluf (aquele que não tem conta no Exterior) integra
a Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados. Todas as evidências são de que ele
entende mesmo de finanças.
Expelido da vida pública sob
acusação de fazer negócios escusos, Jader Barbalho voltou ao Senado, onde já
tinha sido membro da CPI dos Bancos e do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar. Foi na CPI
dos Bancos onde ele aprendeu aquela ética e decoro que lhes são pecualiares.
Alguns desses senhores, ou
outros similares, estão investigando as trampolinagens de um certo Carlinhos Cachoeira, que tem negócios no ramo
zoológico. E todos os deputados e senadores estarão, em breve, votando o
relatório da CPMI. Curiosamente, mesmo se forem provados 100% das acusações ora
feitas ao “empresário”, seu curriculum
vitae não fará nem sombra ao prontuário de muitos de seus julgadores.
Não precisa explicar, eu só
queria entender.
ÍNDIOS COM TERRAS
A Justiça reconheceu, na semana
passada, a legitimidade da Reserva Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu, uma
área de 54 mil hectares no sul da Bahia onde vivem algumas centenas de Pataxó-hã-hã-hães. Os
fazendeiros brancos ali radicados serão expulsos.
Os pataxós foram vítimas, décadas atrás, de uma trambicagem do governo baiano, que concedeu a terceiros títulos de propriedade de terras já legalmente pertencentes aos índios. Até aí, tudo bem, ou tudo mal. Mas o contexto jurídico mais amplo que permeia o assunto é de meter medo, a
começar pelo fato de a autonomia garantida aos indígenas superar em muito a dos demais brasileiros.
A Constituição dá
aos índios a prerrogativa de manterem sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, assim como os direitos sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, ficando a União obrigada a demarcá-las. Por sua vez, o Estatuto do Índio reza que “os bens e
rendas do patrimônio indígena gozam de plena isenção tributária”. (Ah, como o macaco Sócrates queria uma lei dessas para ele!)
Não admira que os índios tanto apreciem
receber mais e mais reservas. Até dois anos atrás, havia 503 já instituídas.
Ainda sem incluir na conta a maior delas, a Raposa Serra do Sol, as terras indígenas ocupavam pouco mais de um
milhão de quilômetros quadrados, ou 12,5% do território nacional, e abrigavam
512 mil pessoas, segundo a Funai.
Taí um probleminha: em cada quilômetro quadrado
do nosso país residem, em média, 22 pessoas; nas reservas indígenas, o número é
0,48. Cada índio dispõe, portanto, de uma área 46 vezes
maior que a do brasileiro comum, aquele pertencente à "raça" que pagou R$ 500 bilhões em impostos, somente nos quatro primeiros meses de 2012. Com a diferença de que as terras
nas reservas onde o índio vive são, efetivamente, suas, ao passo que a “área média
disponível” para cada brasileiro não passa de uma abstração.
Não precisa explicar, eu só
queria entender.
Este artigo está sendo
publicado, simultaneamente, em:
(05/05/2012)
Gustavo, eu concordo contigo que a utilização de cotas para ingresso em instituições de ensino é, na verdade, uma discriminação racial. O que eu ouço de amigos é que a "raça branca" se beneficiou da "raça negra" para "crescer" na vida há séculos. Sendo assim, as cotas balanceiam com este "benefício" dado aos descendentes. Neste pensamento, como identificar os descendentes deste povo explorado? Se um negro vier hoje da África e tiver filhos aqui no Brasil, estes filhos terão direito às cotas? Se não me engano, algumas universidades analisam também as condições financeiras dos negros que solicitaram participar da cota. Mas e os brancos que têm condição financeira similar?
ResponderExcluirSão muitas as questões e, de fato, tento entender, mas não consigo.
André: a meu ver, dois aspectos, principalmente, merecem reflexão: (1) a propensão do STF de tomar decisões por razões políticas e não jurídicas (um desastre) e (2) a eficácia das cotas para realizar objetivos de justiça social.
ResponderExcluirQuanto ao ponto 2, muito melhor seria uma política de igualar (estou dizendo: igualar) as oportunidades educacionais de pobres e ricos, pretos e brancos, sulistas e nortistas (desde o ensino fundamental, não, tardiamente, na universidade) usando instrumentos como milhões de bolsas integrais de estudo e a radical melhoria de qualidade do ensino público. Mas, quem quer, realmente, resolver o problema? Isso não cabe ao STF, claro. Mas, ao governo, sim.
Precisamente! Igualdade da qualidade do ensino, eis um sonho. E as questões políticas entranhadas em diversos setores... eis um pesadelo.
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