segunda-feira, 20 de março de 2017

A zona e as casas de recurso na Maceió dos anos cinquenta

GUSTAVO MAIA GOMES

Humberto Gomes de Barros (1938-2012) escreveu um livro delicioso. Pequeno, mas enorme. Refiro-me a Sexta-feira 13, 1957: Memórias do tiroteio (Maceió, Edufal, 2012), por mim já comentado em outra nota. Como uma nota só, se foi suficiente para Tom Jobim, não me poderia bastar, continuo agora –- e ainda não por derradeiro -– a me ocupar do tiroteio, quero dizer, do livro de um primo brilhante, a quem jamais encontrei.

Uma pena. Pois, escritor, eu sempre quis ser, e ele foi. Amável e bem humorado, eu também gostaria de ter sido, mas não consegui. Ele, sim, a julgar pelo livro que ora continuo a resenhar, escolhendo um tema em cada nota. Nada de tiroteio. Esta é a vez das putas. O melhor capítulo de Sexta-feira 13 é o XXXI, aquele em que seu autor trata da zona, das pensões, das casas de recurso – das putas, enfim – da Maceió nos anos 1950.

“A índole ordeira do Duque”

“Zona”, com o significado de lugar onde se concentra a prostituição, todo mundo ainda sabe o que é. Mas, não sei se a expressão “casas de recurso” era ouvida em qualquer outra cidade, exceto naquela onde Humberto nasceu e viveu até os 19 anos de idade. Para mim, entretanto, um quase alagoano (ainda mais, sobrinho de Álvaro Batinga da Rocha Cavalcante – logo falarei sobre ele) que ia anualmente a Maceió, trata-se de uma expressão corriqueira.

Hoje, as chamaríamos, as casas de recurso, simplesmente, bordeis. Mas, com tal nome cricri se destrói uma poesia. Ir a um bordel é uma ação meramente física, limitada ao objetivo de comprar satisfação sexual. Frequentar uma casa de recurso (não as distingo das “pensões”; penso que, tampouco, as distingue Humberto), em contraste, naquele tempo e lugar, representava uma atividade cultural. Cito o Sexta-feira 13:

As pensões da [Rua] Sá e Albuquerque assemelhavam-se ao Duque [Rua Duque de Caxias. Ambas as ruas se localizavam no Jaraguá, onde ficava a zona de Maceió]. A grande diferença estava nas instalações, nas mulheres (mais vistosas e bem vestidas) e, sobretudo, na clientela. (Pág. 102)

Prossegue o relato de Humberto Gomes de Barros (que não confessa, mas devia ser, também, frequentador, mesmo se pouco assíduo, daqueles lugares):

Em seus bares [da Rua Sá e Albuquerque] era comum encontrar homens influentes: comerciantes, profissionais liberais, professores, deputados, vereadores, prefeitos do interior, juízes e desembargadores. A maioria estava lá somente para bebericar, encontrar amigos e comentar os assuntos do momento. (Pág. 102)

O termo zona, é ainda Humberto quem diz, “adquiriu caráter pejorativo, passando a significar desordem, bagunça. Supina injustiça. A zona nada tinha de bagunçada.” (Pág. 101) Nem era lugar onde, rotineiramente, havia desordens, no sentido de atos violentos e perigosos para os frequentadores. “A índole ordeira do Duque”, ordeira e não bagunceira, surpreendeu, inclusive, uma estudante de sociologia, conforme conta o autor:

Para melhor expor sua tese de conclusão de curso, ela pediu ao marido que a levasse à zona. Meio sem jeito, o esposo concordou. Sentaram-se a uma mesa de bar e depois dançaram ao som da sanfona. Embora fosse uma mulher nova, bonita, bem tratada, ninguém a incomodou sequer com olhares inconvenientes. (Pág. 102)

Surpreendentemente, não apenas para a estudante de sociologia, também para mim, “as operárias do Duque não eram escravas brancas, exploradas por cafetinas e gigolôs desumanos. Eram, na verdade, mulheres cuja virgindade fora vítima de sedução ou violência de algum coronel do interior. Abandonadas pela família, (...) elas encontravam na zona (...) uma tábua de salvação.” (Pág. 102)

Além daqueles “bordeis” instalados no Jaraguá, diz Humberto Gomes de Barros, havia outras casas de recurso espalhadas pela cidade, “todas mais sofisticadas que as pensões da zona”. Ele se lembra de quatro delas:

Railda, na Rua Goiás (Farol), então praticamente deserta, a poucos metros do Abrigo Bom Pastor, mais conhecido como Convento das Arrependidas. (...) Lá pontificava Gilcerone, bela mulher-monumento, de quem se dizia ser amante de riquíssimo usineiro.

Espanhola, sediada num discreto bangalô, na antiga Rua da Lama, pertinho da Praça da Estação. (...) Sua especialidade era importar moças de outros estados.

Lanterna Verde, numa esquina da Praça da Faculdade de Medicina (bairro do Prado). Nela, a ração maior era a bela Lourdinha.

Mangueira Palace: funcionava em bucólico sítio das mangueiras, no Pinheiro, um pouco além do Quartel do Vinte. Seu carro-chefe era Maristela, linda e delicada mignon, autêntico biscuit. (Págs. 100-101)

Minhas próprias lembranças

Não conheci os bordeis de Maceió. Eu era muito jovem, muito tímido, ou as duas coisas, à época. Os do Recife, nos anos 1960, sim, embora (como Humberto?) jamais tenha sido frequentador contumaz. 

A zona principal da capital pernambucana – mas, também, a pior –, naqueles anos, se localizava no bairro do Recife, hoje revitalizado. Com efeito, a Rua da Guia se tornou, em meu tempo de rapaz, quase um sinônimo de zona. Havia, também, concentrações de bares-bordeis na Rua do Rangel (bairro de Santo Antonio). Umas poucas vezes, saí com colegas, tarde da noite, do Jornal do Commercio, onde fui repórter político de 1967 a 1970, e fomos varar a madrugada na Rua do Rangel, que ficava próxima à redação do jornal. Em Boa Viagem, também havia bordeis. Lembro de um que ficava próximo ao mercado público daquele bairro. Fui lá, pelo menos, uma vez, com resultados amplamente compensadores.

Mas eu citei, lá em cima, Álvaro Batinga da Rocha Cavalcante. Sim, o célebre (para nós, pelo menos, seus sobrinhos-afins) Tio Álvaro, advogado, casado com Valentina de Araújo Pedrosa, foi um tipo extremo do homem da classe média alta alagoana dos anos 1950 -– não muito alta, eu diria: ele ganhava bem e gastava otimamente, de modo que seu patrimônio nunca foi expressivo. Brincalhão, atencioso e generoso conosco, Álvaro, segundo minha mãe, Stella, (irmã de Valentina) era bom filho, bom genro, bom amigo, bom cunhado. Só não era bom marido. Nem um pouco.

Mulherengo ao extremo, ele, simplesmente, ignorava a esposa. Dava a impressão de viver caçando parceiras sexuais. Traçava todas as mulheres que lhe cruzassem o caminho e estivessem dispostas a ceder aos seus encantos na cama, que deviam ser muitos. Foi com Tio Álvaro que aprendi os nomes e a localização das casas de recurso de Maceió, familiarizando-me, portanto, com a expressão relembrada no Sexta-feira 13. Mas, como disse, não as frequentei, nem ele sugeriu que o fizesse.

Em solteiro, Álvaro morava com a mãe, viúva, vizinho à casa na Avenida Moreira e Silva, 322, Farol, que viria a ser adquirida por minha avó materna Olga (excluída da usina Uruba, que havia pertencido ao seu marido precocemente morto Manoel Sebastião de Araújo Pedrosa). Quando soube que o casarão ao lado havia sido comprado, Álvaro passou a espalhar (assim ele o dizia, muitos anos depois, por amor à brincadeira, não acredito na veracidade da história) que a casa iria pertencer a uma senhora “dona de muitos recursos”.

Minha avó Olga, cujos "recursos", no sentido financeiro, estavam mais no passado que no presente, o adorava. Como, certamente, teria gostado de conhecer Humberto Gomes de Barros, que não era seu parente, mas também morava no Farol, na Avenida Fernandes Lima, algumas centenas de metros mais a Oeste.

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