segunda-feira, 20 de março de 2017

Humberto Gomes de Barros e a sexta-feira 13 de setembro de 1957

Gustavo Maia Gomes

Um dos paradoxos da minha vida foi ter morado em Brasília em três oportunidades (1985-86, 1995-2003 e 2006) e jamais ter encontrado Humberto Gomes de Barros (1938-2012), magistrado, ministro e presidente do Superior Tribunal de Justiça e, sobretudo, escritor. Dos bons. Pior, nem sequer saber, até muito recentemente, de sua existência e de nosso parentesco, relativamente, próximo: meu avô (Nominando Maia Gomes) e sua avó (Amália Gomes de Barros) eram irmãos.

Quando soube de Humberto, em 2013 ou 2014, já era tarde para conhecê-lo pessoalmente. Em parcial compensação, em 31 de janeiro de 2017, tive o prazer de encontrar, em Maceió, seu irmão, médico oftalmologista Arnoldo Gomes de Barros. Ele, Murilo Lins Marinho e Naia Gomes de Freitas (também primos), Ivan Pedrosa de Maia Gomes (meu irmão) e eu conversamos, naquele dia, nos hotéis Jatiúca e Praia Bonita, umas cinco horas seguidas. E foi de Arnoldo, via Murilo, que recebi um exemplar do livro Sexta-feira 13, 1957: Memórias do tiroteio (Maceió, Edufal, 2012).

Em Alagoas, impeachment se resolve a bala

O livro de Humberto Gomes de Barros é uma preciosidade, mas não pelo relato da inacreditável batalha de pistolas e metralhadoras que ocorreu na Assembleia Legislativa de Alagoas. Isso, afinal, já tinha sido bem contado. (O tiroteio foi notícia no mundo todo. Dele resultaram um deputado morto, Humberto Mendes, e vários feridos, entre os quais Carlos Gomes de Barros, pai de Humberto e de Arnoldo. A causa da batalha foi a votação do pedido de impeachment do governador Muniz Falcão.)

O livro é uma preciosidade, principalmente, pelo que rememora da Maceió dos anos cinquenta e pela narrativa de episódios da vida do seu autor, então um jovem de 19 anos. As reminiscências de Maceió, sobretudo, me levaram ao êxtase. Eu nasci em 1947 e ia à capital alagoana, em férias, pelo menos, uma vez por ano, nos anos entre meu nascimento e, aproximadamente, 1967.

Do tiroteio, não poderia ter lembranças pessoais, mas dele ouvi muito falar, nos anos posteriores a 1957. Um tio materno meu, Hermano Cardoso Pedrosa, estava na praça em frente à Assembleia Legislativa, no meio da multidão que se formara ali. Quando as balas perdidas começaram a assoviar sobre suas cabeças, a multidão enlouqueceu, buscando abrigo. Hermano contava que engatinhou uns 50 metros até um lugar onde os tiros não o poderiam atingir. Humberto revela muitos outros aspectos importantes do mesmo episódio.

As palavras que o vento levou

Mas, não quero espichar demasiadamente esta nota. Prefiro distribuir minhas impressões sobre o excelente livro que acabo de ler em várias delas. Neste momento, apenas relaciono algumas das palavras que encontrei no “13 de Setembro” de Humberto Gomes de Barros (todas elas definidas pelo autor em notas de rodapé) e que já não são mais usadas hoje, ou apenas raramente o são.

“Datilografar” era o mesmo que “bater à máquina”; hoje, chamamos isso “digitar”. “Reclames” eram os anúncios comerciais afixados no teto dos bondes. “Peniqueiras”, nome tão depreciativo, era como se designavam à boca miúda as empregadas domésticas, cujas tarefas diárias incluíam esvaziar os “urinóis” (vasos onde se depositavam fezes e urina) enchidos durante a noite. “Carros de praça” eram o que, em outras cidades (a exemplo do Recife), mas não em Maceió, já se conheciam como táxis.

“Brincos de viúva” eram o belíssimo nome usado para designar aquela frutinha preta conhecida, alternativamente, como azeitona ou jamelão. (Na casa de minha avó materna Olga Cardoso Pedrosa havia um enorme pé de azeitonas ou de brincos-de-viúva, mas ela chamava os frutos de “oliveiras”.) “Assistências” eram as ambulâncias que socorriam os feridos ou os subitamente doentes. “Carlito” era a casquinha do sorvete.

“Fazer sabão” era fazer carícias íntimas na namorada –- mais recentemente, chamávamos isso de “amassar”, mas hoje creio que até este segundo termo já caiu em desuso. A “zona”, uma abreviação para “zona do baixo meretrício”, era a região onde se concentravam as prostitutas. (Por sinal, o capítulo mais delicioso do livro de Humberto é o que trata das zonas de Maceió nos anos cinquenta. Voltarei a isso em outra nota.)

“Puara” era um sinônimo de puta; “bilontra”, alguém dado a conquistas amorosas. (Esta palavra pode ainda estar em uso, não sei.) “Dar o xexo” (ou ser “xexeiro”) era se isentar de pagar a conta, geralmente, em um bar. “Ficar na berlinda” significava ser objeto da atenção geral, durante um tempo. A mãe de Humberto, Laurinha, detestava "estar na berlinda".

Tudo isso (e muito mais) está no livro de Humberto Gomes de Barros. Por minha conta, acrescento mais umas poucas palavras do dialeto maceioense dos anos cinquenta do século passado, tal como as ouvia, principalmente, de meus primos Marcus, Salete e Alfredo. “Chimbras” eram as esferas de metal, geralmente, retiradas de rolimãs imprestáveis, com as quais jogávamos “bola de gude”. (As bolas de gude, propriamente ditas, eram de vidro.)

“Amêndoa” era o fruto, de gosto horrível, para mim, mas apreciado pelos meus primos alagoanos, que os pernambucanos chamam coração-de-nego, e os paraenses (e, creio, também os cariocas) designam como castanholas. A árvore, que cresce muito e dá uma sombra portentosa, ainda está presente nas calçadas de cidades brasileiras. Finalmente, lembro a particularíssima “oliveira” que, hoje, penso ter sido empregada, apenas, por minha avó Olga e seus netos que moravam com ela no casarão da Avenida Moreira e Silva, n. 322, no Farol, Maceió.

Num período de 60 anos, as modificações, não apenas do vocabulário, dos modos de vida, foram tão imensas que, em retrospecto, nos causam espanto. Mas as continuidades também deveriam ser realçadas. Humberto conta a história dos quem-me-quer na Praça Deodoro, de Maceió. (Os homens se postavam em pé ao lado do passeio, enquanto as moças desfilavam, trocando olhares.) Segundo ele, muitos casamentos nasceram ali e daquele modo. Hoje, o quem-me-quer é feito pela internet, mas a sua essência continua a mesma. Eu, pelo meu lado, continuo apreciando as oliveiras de Dona Olga. E, se os carros de praça de Maceió se tornaram táxis e hoje são uber, eles continuam nos levando de um canto para o outro, como sempre o farão.

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