quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Atualidade de Gilberto Freyre

Gustavo Maia Gomes

Confesso (não é a primeira vez que o faço) ser um admirador tardio do sociólogo e antropólogo pernambucano Gilberto Freyre. Se não o fui mais cedo foi porque, durante anos — até meados dos 1980 —, subscrevi sem a devida crítica o pensamento esquerdista então dominante, para o qual a única boa sociologia era aquela que tinha como dogma a inevitabilidade da revolução e como dever sagrado contribuir para apressá-la.

Os "social-revolucionários" (estou pensando nos anos 1960-80) eram, principalmente, paulistas: Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e outros. Eles trataram de diminuir o valor da obra de Freyre que, evidentemente, não compactuava com a ideologia de raízes marxistas cultivada pelos sociólogos da Universidade de São Paulo. O tempo se encarregou de recolocar as coisas em seus devidos lugares. E foi Gilberto Freyre, não os paulistas, quem passou melhor no teste.
Não que a obra gilbertiana tenha sobrevivido intacta a quase um século de escrutínio (Casa Grande e Senzala, como sabemos, é de 1933). Mas, muita coisa dela ainda se lê, hoje, com prazer e proveito.

Em contraste, quem aguenta ler Florestan Fernandes, cujos livros, hoje com pouco mais de cinquenta anos, já eram intoleravelmente chatos nas primeiras edições? Quem leria, hoje, o Fernando Henrique Cardoso dos anos setenta, não tivesse ele sido presidente da República décadas depois?
Ninguém mais lê essa gente porque os pilares de sua sociologia eram feitos de pau oco. A "Revolução" tão ansiada pelos sociólogos paulistas revelou ser um mito enquanto previsão histórica para o Brasil e um erro fatal como objetivo da ação política. (Pois a "Revolução" aconteceu, sim, ou já tinha acontecido, em países como a Rússia, a China, a Coreia do Norte, Cuba... Todos eles, enquanto permaneceram socialistas, foram fracassos econômicos e infernos políticos.)

E quanto a Freyre? Em 1948, ele escreveu assim (já o tinha feito década e meia antes):

"Meu ponto de vista na interpretação da história do homem brasileiro continua [a ser] o de quem enxerga nessa formação e nesse homem, ao lado de um processo biológico — o da miscigenação —, mas quase independente dele, a ação, a expansão, o desenvolvimento de um processo social: o da interpenetração de culturas. Processo que tem agido menos no sentido de desintegração ou degradação de qualquer das culturas presentes na nossa formação que no da integração de todas numa sociedade e numa cultura nova e híbrida, múltipla e rica, ainda que confusa, em suas heranças, em suas técnicas de desenvolvimento, em seus valores e estilos de vida moral e intelectual, estética e material." (Gilberto Freyre, Ingleses no Brasil, Introdução, Rio de Janeiro , José Olympio, 1948, pág. 26.)

Se alguém duvida da atualidade disso que copiei acima, pense um instante no prejuízo que podem trazer ao nosso país políticas como as cotas raciais e as várias manifestações do pensamento "politicamente correto" que condena, por exemplo, o chamar alguém de preto, como se pretos, pardos, cinzentos, morenos, mulatos não fôssemos todos nós, brasileiros. Essas práticas, sob o pretexto de proteger os discriminados, supostamente, por razões de "raça", podem destruir a "integração de culturas" apontada por Gilberto Freyre como um elemento essencial de nossa formação. Elas podem, com o tempo, renegando nosso passado, criar as divisões raciais de que os Estados Unidos, para citar um exemplo óbvio, nunca conseguiram se libertar.

Se, realmente, continuarmos a seguir essa trilha (dominante, hoje, como dominante foi, no passado, o mito da revolução) vamos ter, no futuro próximo, sérios conflitos raciais. Será uma desgraça. Mas ninguém poderá dizer que Gilberto Freyre não nos avisou.

(Publicado no Facebook em 3/1/2017.)

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