quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

As duas mortes de um magistrado



Gustavo Maia Gomes


Nominando Maia Gomes morreu em 1966. Nesse ano, ele morava em Maceió, na Rua João Pessoa, 99, com Tereza, Marieta e seus remédios. E um piano cujos últimos Recuerdos de Ypacaraí há muito se haviam perdido. Desde 1964, as controvérsias em torno da venda de Monte Verde o tinham afastado bastante, embora não totalmente, do filho, Mauro, que nunca se conformou em deixar de ser o seu único herdeiro, pois agora haveria uma Tereza também querendo a parte dela. Lembro-me de que, à época, embora eu fosse um menino de 17 anos, tendia a achar que o avô tinha, sim, o direito de se casar novamente. Em semelhante clima, contudo, quando ele morreu, os tênues laços existentes entre Tereza e nós – filho, nora e netos de Nominando – se extinguiram completamente. Ninguém lembra, sequer, o seu sobrenome.

Mas, a morte, em 1966, não foi a última de Nominando, assim como não tinha sido, meio século antes, a de Alípio; e nem seria, em 1972, a última morte de Fernando a que os médicos viriam a atestar. A aniquilação final dos três Maia Gomes que deixaram o campo e foram morar nas cidades somente se completaria 20, 30 anos depois, com o desmoronamento definitivo do mundo em que eles, seus pais e irmãos haviam nascido. Um mundo feito de terras, cana e açúcar; de trabalhadores, alguns, apegados aos patrões por genuína amizade, como o foram Abílio, Lupicínia, Jairo, Apolinário, em Monte Verde; de engenhos e usinas; de João Barbeiro, em Branquinha, cortando o cabelo de rapazes e homens em quatro gerações; de riquezas muitas vezes fictícias e dívidas invariavelmente asfixiantes; de brigas familiares e assassinatos. Mas, também, de beleza rústica, coragem extrema, ternuras contidas, poesias apenas esboçadas. Um mundo de luízas, elisettes, afras, marias, josefas e terezas; marietas, talvez – as mulheres deles: todos os três irmãos se casaram mais de uma vez.

Foi somente quando esse mundo desapareceu para sempre que os alípios, fernandos e nominandos morreram pela segunda vez e, então, definitivamente. Quando sumiram as terras próprias e ficaram as que o banco havia tomado; quando se fecharam os engenhos e se arruinaram as usinas; quando morreram ou foram embora os trabalhadores leais; quando os irmãos já não brigavam com os irmãos, nem os sobrinhos com os tios, nem os primos com outros primos. Pior do que isso tudo: Nominando morreu sem volta quando já ninguém mais podia chegar àquele lugar tão dele montado em um vagão de primeira classe puxado por uma locomotiva de segunda. Meu avô morreu quando o trem sumiu. Quando o trem para Branquinha sumiu.

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