sábado, 15 de outubro de 2011

Rebolation é cultura


Gustavo Maia Gomes


Em 1935, um grande sucesso da música popular brasileira foi “Chão de estrelas”, de Orestes Barbosa. Tinha versos como: A porta do barraco era sem trinco / Mas a lua furando nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão / E tu pisavas nos astros, distraída... Doze anos depois, o Brasil cantou “Asa Branca” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira): Que braseiro, que fornaia / Nem um pé de prantação / Por farta d'água perdi meu gado / Morreu de sede meu alazão... Em 1974, apareceu nas paradas “As rosas não falam”, de Cartola: Queixo-me às rosas / Mas que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti...
Tudo isso é passado. Em 2010, o grande sucesso nacional chama-se “Rebolation”. Com quase nada a mais, a letra é a seguinte: Mão na cabeça que vai começar / O rebolation, o rebolation, o rebolation, tion, rebolation / O rebolation, tion, o rebolation, o rebolation, tion, rebolation / Rebolation é bom, bom, rebolation é bom, bom, bom / Rebolation é bom, bom. Se você fizer fica melhor. Contrariamente ao caso das canções antes citadas, esta tem um texto que qualquer débil mental pode entender. Mas ela também incorpora ritmo vibrante e é executada com coreografia de forte apelo sensual (para alguns).
LETRA E MELODIA
Das três canções antecessoras do “Rebolation”, enfatizei as letras, que tentam transmitir suas mensagens pelo recurso ao sentimento, à emoção, à vivência da beleza. As melodias respectivas são agradáveis ao ouvido, claro, mas, no máximo, têm a mesma importância das letras. Nunca, mais. Já o aspecto visual era quase inexistente; o ritmo, tampouco, merecia destaque. 
Isso se explica. Por um lado, não havia televisão ou, quando passou a haver, o acesso a aparelhos de TV era limitado a uma pequena camada da população. Além disso, muito pouca gente podia ver, em ocasiões esparsas, uma apresentação ao vivo de Sílvio Caldas (que gravou “Chão de estrelas”), Luiz Gonzaga, ou Cartola. Por outro lado, a qualidade do som radiofônico ou gravado (especialmente, para tons mais graves) era ruim, o que tirava o impacto da percussão e, em última análise, do ritmo.
De fato, até as décadas de 1960 e 1970, o grande veículo de difusão era o rádio -– que, mesmo assim, estava longe de ser acessível à maioria; o disco (e, mais ainda, os fonógrafos) era, igualmente, caro e podia ser adquirido apenas por poucos. Em poucas palavras: na época do rádio, a música teve de se limitar a uma mistura de letra e melodia, sem visual e sem grande apelo rítmico. Os consumidores eram poucos e, dada sua raridade, relativamente, ricos. Em termos comparativos, eram, também, educados -– instruídos, quero dizer. A música que então se produzia e comercializava era coerente com essa realidade.
IMAGEM E RITMO
Hoje em dia, muita coisa mudou. Praticamente, cem por cento da população brasileira têm acesso à televisão; um DVD pode ser adquirido em versões piratas por quase nada. A qualidade da reprodução do som também aumentou muito, enquanto os respectivos preços baixaram enormemente. Assim, duas novas dimensões foram acrescentadas à música popular: a visual e a (fortemente) rítmica. Ao mesmo tempo, contudo, o estofo emocional, intelectual e estético da maioria das pessoas (seu nível de educação, sua sensibilidade, seu interesse em temas socialmente relevantes) não parece ter mudado quase nada. Só que, antes, essa gente não comprava música; quem o fazia era capaz de entender Orestes Barbosa, Luiz Gonzaga ou Cartola. Hoje, ela -– a grande maioria do povo -– compra, em larga escala.
Portanto, a música comercial, agora mais barata, tornou-se acessível à massa. E o quê uma população funcionalmente analfabeta mostrou querer consumir? Muito menos poesia do que imagens; muito menos melodia do que ritmos alucinógenos; muito menos amores românticos do que sensualidade aberta. E, assim, atingimos o “Rebolation”. Sua lição mais profunda talvez seja essa: para tirar proveito da redução dos custos de gravar, reproduzir e difundir som e imagem, a oferta de música amoldou-se ao tipo de preferências que (respeitadas pequenas variações) sempre existiram, mas que só agora puderam tornar-se demanda efetiva, ou seja, respaldada em poder de compra.
Em síntese: consumir música tornou-se barato, mas a qualidade dos consumidores jamais melhorou significativamente. De modo que, quando a música chegou ao povo, ela também atingiu seu estágio mais avançado de degradação. Por critérios estéticos, pelo menos. Economicamente, ao contrário, a produção de porcarias vai muito bem.

(Publicado na revista Nordeste Econômico, Ano 4, n. 19, abril de 2010)

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