quarta-feira, 3 de outubro de 2018

PILATOS, O LIVRO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 22-9-2018
Uma consequência de ter parente que vai morar no Exterior é herdar sua biblioteca. São poucos os contemplados, pois, se parentes deixando o Brasil abundam, livros são raros. Eu fui. Ou melhor, ele foi, com sua mulher; eu fiquei, com a minha e os livros recebidos em doação.
Dentre esses, ataquei primeiro Nelson Rodrigues, "A vida como ela é". A releitura foi agradável; Nelson é sempre atual. "Na veia", como se dizia. Agora li "Pilatos", romance de Carlos Heitor Cony. Conta a história de um pobre coitado que, sem jamais ter sido coisa nenhuma, continuou a nada ser, depois de atropelado por um ônibus.
No hospital, lhe amputaram o pênis. Ele fica sabendo disso ao despertar do sono anestésico, pois, ao seu lado, havia duas freiras absortas num vidro de compotas com o pau dele (é a palavra que Cony usa para o ex-membro viril do acidentado) imerso em substância líquida. Devia ser o único que elas jamais haviam visto, comenta o narrador.
Aquele pau tinha nome, um nome bíblico: Herodes. E lá estava ele, exposto à curiosidade pública e privada. Já o personagem principal do romance nem nome tem. Apenas uma vez, declarou chamar-se Álvaro Picadura. Um nome inventado. Picadura ele, se tinha sido, não era mais.
Quando recebe alta, o suposto Álvaro leva consigo o vidro de compotas, sua única propriedade. A história subsequente incorpora novos personagens, todos desprovidos de passado ou de futuro, que vivem o dia a dia da absoluta miséria fazendo biscates, aplicando golpes, pedindo esmolas, furtando transeuntes, sendo presos e espancados nas delegacias.
Nos bancos da Cinelândia, uma noite dessas, o homem e seu vidro de compotas encontram Joaquim Dos Passos, que escrevia contos. Num deles, o protagonista, desiludido com as mulheres, pois vivia sendo chifrado, muda-se para Jacarepaguá, na companhia da cabra com quem passa a viver maritalmente. Mas, vejam o azar, havia um bode no quintal vizinho e a cabra fura a cerca, a fim de se enroscar com o semelhante, do que resulta o assassinato de ambos.
Da primeira vez que, no romance, Picadura e Dos Passos são presos, eles se encontram com mais dois personagens notáveis. Um velho sem nome, cuja única obsessão vem a ser apropriar-se do pau in vitro, que pensa ser uma salsicha. E o Grande Arquimandrita, alegadamente, filho do rei libanês Georges Fahmé, que organiza um governo completo com os cinco ou seis presidiários da mesma cela.
Um dia, eles são soltos, voltam para a rua, e tudo permanece sendo como sempre tinha sido. Mais para o fim do livro, o velho, em fuga após um furto mal sucedido, morre atropelado; o Grande Arquimandrita se torna informante da polícia; Dos Passos é morto por uma rajada de metralhadoras. Apenas Álvaro Picadura, que não era nem uma coisa nem outra, prossegue a sua vida nas ruas.
Nas derradeiras linhas, ele faz uma incursão filosófica. A única. Passara a noite ao léu. "O dia começava a nascer. Perto do Hotel Glória, havia um grupo de rapazes e moças que cantavam e dançavam, esticando um fim de festa. [Um sujeito ia passando e o olhou], depois apontou para o grupo que cantava diante do sol que nascia. -- Estão felizes, hem? -- Estão mal informados, respondi -- E afastei-me".
Narrado em linguagem chula, adequada ao enredo, Pilatos é um excelente livro. Exercício magistral na completa falta de modos literários. Em muitas passagens, o leitor disposto a ler palavrões vai morrer de rir com as irreverências.
Eu sempre soube que humor, quando tem qualidade, é coisa séria. Viva Cony, embora ele tenha morrido este ano.

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