quarta-feira, 3 de outubro de 2018

JOSEFINA E AS MULHERES NO MUNDO DOS ENGENHOS

Gustavo Maia Gomes
(20/5/2018)
Em várias passagens de “O Trem para Branquinha”, discuto a condição feminina na sociedade canavieiro-açucareira do Nordeste Oriental entre os últimos anos 1800 e os primeiros 1900. Esse não é um tema novo, mas a forma como o trato no livro foge um pouco da abordagem mais comum. Eis um extrato editado do Cap. 17 (“Josefina e o engenho mal assombrado”, págs. 257 e ss), que trata de minha bisavó Josefina Cristina Amélia Quanz (1869-1922). Daqui para baixo, tudo é citação de “O Trem”.
“Esse depoimento sobre a Vovó Fifi [contido nas Memórias de Heloisa Pedrosa (1916-2007), irmã de minha mãe, Stella (1917-2001)] deixa a clara impressão de que as mulheres das classes média e alta do Nordeste litorâneo canavieiro não tinham, realmente, vida própria fora do circuito familiar ou, no máximo ‘familiar ampliado’, como nos compadrios de Josefina com os funcionários da fábrica Tibiri [em Santa Rita, PB, onde trabalhou o marido dela, engenheiro Francisco Dias Cardoso]” (pág. 262).
Mas, elas não reclamavam, continua o texto: “Não há qualquer registro de que aquelas mulheres lastimassem a sua condição. O que elas queriam era serem valorizadas pelo acatamento dos costumes, pela fidelidade ao marido, a domesticação das filhas (mais que dos filhos), a observância religiosa, a boa administração das empregadas domésticas, as habilidades na costura e bordados, no piano, o carinho com os netos” (pág. 263).
“Hoje em dia”, escrevi, “depois de tanta agitação feminista, parece inquestionável que o mundo de Josefina desvalorizava a mulher. Minha mãe foi uma das poucas, em seu tempo, a perceber isso com clareza – mas, sem que daí se seguisse revolta ou tentativa séria de mudar a própria situação. Dizia que a pior opressão da humanidade não fora a dos negros pelos brancos, a dos pobres pelos ricos, ou a dos descrentes pelos religiosos e, sim, a da mulher pelo homem. Stella, porém, era distintamente mais inteligente do que a quase totalidade das mulheres de sua família, seu lugar, seu mundo” (pág. 263).
“Em quê, dando agora exemplos concretos, aquela sociedade relegava o elemento feminino a um status de segunda classe, submisso, irrelevante?” Assim prossigo, no Cap. 17: “não quero me restringir ao duplo crivo da moral sexual, que punia as mulheres com máxima severidade à menor transgressão e era leniente com os homens, até mesmo em face dos pecados mais graves. Essas disparidades, importantíssimas, sim, creio que já tinham sido percebidas como fatos da vida, naturais, imutáveis (e aceitos por homens e mulheres), em tempos tão remotos quanto os da Vovó Fifi” (pág. 263).
Refiro-me – continuo no texto – “a que todas as atividades cujo desempenho exitoso gerava reconhecimento social amplo – na forma de dinheiro, notoriedade, reputação, influência muito além das fronteiras familiares – eram reservadas aos homens. Somente homens podiam se tornar políticos destacados, escritores de renome, advogados brilhantes, padres, monsenhores, bispos e arcebispos reconhecidos, senhores de engenho donos do mundo e das pessoas. (Aqui, havia exceções: se o marido morria, às vezes, suas mulheres assumiam e davam conta da tarefa de gerir as propriedades e sustentar os filhos com seu trabalho. Mas eram exceções.) Às mulheres era vedado, se não a todas, à imensa maioria, até mesmo ganharem o próprio dinheiro, ter independência financeira” (págs. 263-4).
“Um sociólogo das relatividades poderia contra-argumentar que o papel das mulheres em universos sociais como aquele em que viveu Josefina Quanz não era menos importante que o dos homens. Que, sem a valorização da maternidade, por exemplo, nenhuma organização social duraria muito tempo. Que as mulheres tinham responsabilidades não menores que a dos homens na sustentação daquele mundo deles: cuidar dos filhos, administrar as casas, costurar as roupas. Penso que esse argumento é verdadeiro e falso. Mais falso que verdadeiro. A ‘valorização social’ da maternidade, em grande medida, era um engodo, uma sugestão às mulheres de que elas deviam permanecer passivas parindo os filhos que, talvez, nem desejassem. Morrendo, muitas vezes, do quinto, sexto ou sétimo partos” (pág. 264).
“Ao assumirem o discurso que enaltecia o seu papel de procriadoras (ao mesmo tempo em que lhes fechava todas as outras portas), as mulheres mordiam a isca, conformavam-se com sua posição secundária, e mantinham intacto o mundo que os homens haviam criado para o desfrute deles, não delas, nem de ambos. O que lhes sobrava, às mulheres? Cuidar dos filhos? Administrar as casas? Costurar? Todas essas eram tarefas de segunda classe, tanto que, em larga medida, podiam ser delegadas a gente sem instrução, que nem ‘branca’ precisava ser. ‘Vovó Fifi tinha muita sorte com as empregadas’, registrou Heloisa Pedrosa [em suas Memórias], considerando isso um fato tão importante (e era!) que não podia deixar de ser mencionado” (págs. 264-5).
A discussão se estende, em “O Trem para Branquinha”, por mais algumas páginas, no citado Capítulo 17 e em outros. Paro por aqui, pois não quero lhes tirar o prazer de comprarem o livro e o lerem. Lançamento em Maceió nesta quinta-feira, 24/5, a partir das 18:30, na Livraria Leitura, Parque Shopping.

Nenhum comentário:

Postar um comentário