sábado, 17 de junho de 2017

Jean-Jacques Rousseau em Jerusalém


Gustavo Maia Gomes

É temerário falar a respeito de um livro que ainda nem terminei de ler, mas sucumbi à tentação. Refiro-me a Sapiens: Uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari (tradução Janaína Marcoantonio, 8a. edição, Porto Alegre, RS: L&PM, novembro de 2015). Para ser mais preciso, tenho em mente o quinto capítulo (“A maior fraude da História”), que trata da invenção da agricultura, ocorrida doze mil anos atrás.
O autor carrega as credenciais de ter um doutorado em História por Oxford e de ser professor da mesma disciplina na Universidade de Jerusalém. Sapiens tem sido um best seller mundial. No Brasil, o livro alcançou inacreditáveis oito edições no mesmo ano de lançamento (2015). O que há por trás desse sucesso? Tenho uma resposta preferida, que apresento a seguir, em etapas.
A explicação
Não sei se foi na Inglaterra ou em Israel que Yuval Harari descobriu Jean-Jacques Rousseau (1712-78), mas a influência do filósofo francês é perceptível no quinto capítulo. Surpreendentemente, ele só é citado 300 páginas à frente e num contexto que não tem diretamente a ver com a agricultura.
Rousseau criou o mito do bom selvagem que, de tempos em tempos, é desarquivado, tem o mofo removido, e ganha novos adeptos. Disse ele que, em seu estado bruto, as pessoas humanas são livres e felizes. Vivem em paz com a natureza e com seus semelhantes. A desgraça veio com a civilização, que lhes roubou a liberdade, impôs-lhes tiranos e os fez trabalhar interminavelmente. Mas, a civilização nasceu da agricultura, cuja invenção teria sido, consequentemente, “a maior fraude da História”, nas palavras de Harari.
Detalho um pouco: quem escreveu isto abaixo copiado foi Jean-Jacques Harari, também conhecido como Yuval Noah Rousseau. Está em Sapiens (pág. 89 da oitava edição brasileira):
Em vez de prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante que a dos caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades mais variadas e estimulantes e estavam menos expostos a ameaças de fome e doenças. A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer. Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais [aqui Harari ecoa Thomas Malthus, 1766-1834, sem citá-lo] e elites favorecidas. Em média, um agricultor trabalhava mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior. A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História.
Desconfio que a popularidade do livro se deva, exatamente, a esse capítulo cinco. Mas, baseado em que evidências o autor afirma ser a vida dos agricultores “menos gratificante que a dos caçadores-coletores”? Esta não é uma proposição fácil de comprovar (afinal, ainda não temos gratificômetros); ela só parece auto evidente para os seguidores da parábola rousseauniana, dentre os quais não me incluo. Há várias outras afirmações em Sapiens que também suscitariam refutações, mas vou ignorá-las. A grande vendagem do livro veio de seu alinhamento à tese do bom selvagem e é nela que concentrarei as atenções, daqui em diante.
Diálogo surreal
Harari pode estar certo ou errado em tudo o que disse no trecho citado, mas sua frase mágica é a última: “A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”. Eis aqui um paradoxo. Mesmo se alguém concordasse integralmente com o restante da citação, ainda acharia difícil aceitar essa conclusão bombástica. Entre outras razões, porque fraudes pressupõem autores, gente operando conscientemente para enganar outras pessoas, fazendo-as agir (ou impossibilitando-as de reagir) de uma maneira que contribua para a realização dos objetivos do fraudador. E é flagrantemente falso que a agricultura tenha sido inventada por um ou vários sabidões. Nunca houve, por exemplo, este diálogo entre dois primitivos caçadores-coletores.
– Aonde vais?
– Vou ali inventar a agricultura.
– Isso demora?
– Nem um pouco. Guarda meu churrasco.
– Tem certeza de que quer ir, mesmo?
– Sim, por quê?
– Comeremos o pão com o suor de nosso rosto.
– E manteiga.
– Esta vida gratificante de correr atrás de gazelas será destruída.
– Haverá Big Macs.
– A agricultura produzirá bethovens.
– Teremos excelente música.
Viva a agricultura!
Recentemente, participei de um debate ao vivo e sem a intermediação da internet com um economista francês chefe de uma agência governamental de planejamento que era, também, padre jesuíta. (Não se trata de um detalhe irrelevante, como veremos.) Morando próximo à catedral de Notre Dame, ele nos aconselhou a todos a mudar para as brenhas da África ou da selva amazônica. Era onde, fugindo desta nossa civilização carente de tudo isso, iríamos encontrar os povos dotados de sabedoria, ecologicamente corretos, felizes desconhecedores da propriedade privada.
Repliquei que discordava de tais conselhos e que, de bom grado, assumiria seu emprego em Paris, providenciando para que ele, em troca, conseguisse uma posição na tribo dos ianomâmis. Nem ele se entusiasmou com a ideia, nem o público presente me apoiou. (Uns poucos homens e mulheres, talvez, sim.) Mas, o ponto importante é que a popularidade do discurso primitivista mostrou-se muito clara, suscitando a pergunta: Por que essa atração por Rousseau? Identifiquei, naquela pequena plateia, o mesmo sentimento que explica a vendagem recorde do livro Sapiens, de Yuval Harari. Vou tentar interpretar isso, mas só depois de fazer algumas considerações preliminares.
Eventos ou sequências de eventos historicamente importantes quase nunca resultam de decisões tomadas por agentes – indivíduos ou grupos de pessoas – dotados de alguma consciência do que estão fazendo. Ainda menos comum é que os responsáveis por essas decisões (quando for possível dizer que tais responsáveis existiram na forma de pessoas específicas e, teoricamente, identificáveis) sejam ou tenham sido capazes de antecipar seus efeitos de longo prazo. Nessas condições, olhar para a História em busca de vilões fraudadores ou de heróis derrotados que queriam continuar se abrigando em cavernas é um procedimento infantil. No extremo, desonesto.
No caso da agricultura, não se pode dizer que ela tinha tido “inventores” conscientes. (Portanto, é fraudulento afirmar que sua invenção foi uma fraude.) O fato histórico de sua criação deve ser registrado e as consequências respectivas identificadas. Podemos fazer isso, tanto Harari quanto eu. A diferença é que ele acha que a “invenção” da agricultura foi um malefício para a humanidade, enquanto eu estou certo do contrário. Tudo bem, se for apenas uma questão de valores diferentes. Mas não me parece que os neoadmiradores de Rousseau percebam com clareza as implicações de suas preferências.
Com efeito, nada do que tem valor reconhecido em nossa civilização existiria sem a agricultura. Sócrates não teria filosofado contra os sofistas; Cervantes não teria escrito Dom Quixote; Shakespeare teria passado a vida flechando ovelhas selvagens; Michelangelo teria sido um caçador de rãs; Johann Sebastian Bach seria um surdo a mais, no meio de tantos comedores de amoras; as pirâmides nem teriam sido imaginadas, nem as catedrais góticas, nem a Guernica de Picasso, nem a Mecânica Racional de Newton, nem a Relatividade de Einstein, nem o ar-condicionado, nem a penicilina, nem as vacinas, nem a possibilidade de viagens intercontinentais rotineiras, nem o WhatsApp, nem o telefone, nem o jornal diário, nem o Big Ben de Londres, nem a Torre Eiffel de Paris, nem o trem para Branquinha. Continuaríamos a invejar os pássaros pela sua capacidade de voar.
Você seria analfabeto, leitor, e eu também. Nunca teria tido o prazer de montar um cavalo árabe selado; jamais teria visto o outro lado da Lua, nem acompanhado de sua poltrona o jogo final da NBA. Charles Chaplin, por sua baixa estatura, seria escalado para caçar tatus; somente os sapos adjacentes ririam de suas graças. Ninguém pagaria um padre jesuíta e economista francês para atravessar o oceano e dizer bobagens a plateias receptivas. Contra a sua vontade (se pudesse imaginar as belezas da inexistente Notre Dame de Paris) ele estaria morando na África, onde dormiria o dia todo todos os dias, devido a ter sido picado pela mosca tsé-tsé. Nas poucas ocasiões em que abrisse o olho, se entediaria com ver o Tarzan pendurado nas árvores soltando seu grito animalesco – AAARRRGGGHHHH!!! Um minuto depois, estaria de novo a dormir.
Eu não quero nada disso para mim e desconfio que, tampouco o quer o leitor ou o jesuíta francês. Portanto, viva a agricultura!
Por que essa atração por Rousseau?
Retorno à pergunta feita acima e, agora, tento respondê-la. Por que o mito do bom selvagem – e seu corolário de negação da agricultura e da civilização – atrai tantos adeptos? Na origem, esse era, apenas, o discurso dos derrotados e dos portadores de sentimentos de culpa. Aqueles que não tendo alcançado uma posição satisfatória no mundo onde vivem, são consolados pela crença de que seu fracasso se deveu à invenção da agricultura. Aqueles que, como os católicos, jesuítas ou não, economistas ou não, sempre cometeram algum pecado original e prazerosamente se redimem jurando que a virtude está com os perdedores. (Mas, não acreditam nisso, de fato, o que só piora as coisas, por aumentar a necessidade de expiação.)
Tudo bem que esse tenha sido o núcleo original dos seguidores de Rousseau. Ocorre que o número de pessoas que, hoje, se mostram receptivas ao discurso da autoflagelação excede em muito a quantidade dos fracassados e portadores de complexos de culpa. Quem compõe os contingentes adicionais, exércitos de reserva das teses mais conservadoras?
Nas sociedades contemporâneas, boa parte delas imensamente ricas, se comparadas com os bandos de caçadores-coletores, há muitos professores universitários, escritores, artistas regularmente pagos para não fazer nada de útil. Escrevem dissertações estrambóticas, publicam livros com teses as mais esdrúxulas – e a sociedade continua sustentando-os em seus altos padrões de vida. Essas pessoas são propensas a dizer que o mundo é ruim. Percebem que, assim procedendo, despertam muito mais simpatias e vendem quantidades maiores de suas obras, do que o fariam se reconhecessem que este mundo criado pela agricultura, a indústria, as tecnologias de alta eficiência, é tão bom, tão espetacularmente bem sucedido, que até inúteis como eles encontram maneiras de viver com opulência e difundir suas ideias sem grande esforço. Esses intelectuais vivem da multiplicação dos pães possibilitada pela Revolução Agrícola, mas multiplicam seus clientes negando esse fato óbvio.

Não estou dizendo que professores e escritores como Yuval Noah Harari sejam desonestos. Mas de que ele escreveu aquela frase terrível (“A Revolução Agrícola foi a maior fraude da História”) com objetivos mercadológicos, tenho poucas dúvidas. Jean-Jacques Rousseau em Jerusalém.

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