sexta-feira, 2 de junho de 2017

Mesa posta em Maceió (Reminiscências)

Gustavo Maia Gomes


Convivi pouco com minha avó paterna Josefa de Azevedo Bahia (Maia Gomes por casamento), que morreu em 1954. Imagino que, a exemplo de tantas mulheres de sua época e classe social, Maninha, como preferia ser chamada, também sabia cozinhar direito. Na Fazenda Monte Verde (Branquinha, AL), seu lugar de referência, ela cultivava figos, araçás, laranjas-da-terra. Dos frutos, fazia doces inesquecíveis. Quer dizer, no meu tempo, a cozinheira era Lupicínia, auxiliar que aprendera as receitas, possivelmente, passadas pela patroa.

Em Monte Verde, próximo à casa-sede, também havia um pé de cajarana, de que Ivan, meu irmão, tem saudosas lembranças. O fruto cajarana, por sinal, caiu em desuso, não apenas em Alagoas. Ninguém mais se lembra dele. Virou uma espécie de máquina de escrever, ou telégrafo ferroviário, ou aparelho de fax. As novas gerações nunca viram um troço desses, assim como desconhecem o gosto das cajaranas. As da fazenda eram agradáveis ao paladar, mas delas minha avó não fazia doces. Talvez por isso tenham desaparecido tão completamente de nossas vidas.

Se de Maninha lembro pouco, da outra avó, Olga Dias Cardoso, que ganhou o nome Pedrosa, as recordações culinárias abundam. (Sem trocadilhos, por favor.) Preparava um sururu de capote que era o máximo. Sururu, o molusco, muitos conhecem. Capote, no caso, é a sua casca. O ensopado levava coco e a maior parte dos bichinhos era depenicada (como se dizia); apenas uns poucos iam para a mesa ainda habitando sua residência original. “Faziam assim mais por razões estéticas”, recordou Ivan, quando objetei que comer sururu no capote dava o maior trabalho.

Pitus (uma espécie de camarões de água doce gigantes) e carapebas (peixes pequenos típicos de Alagoas) eram comprados na porta da casa e cozinhados com maestria. Do porco, Olga e sua filha Maria do Carmo (das quatro, me parece, a que mais gostava de cozinhar e comer) sabiam aproveitar tudo: da cabeça faziam “queijos”; das partes mais nobres, a linguiça; dos pés, um prato delicioso. 

Além disso, na sua casa da Avenida Moreira e Silva, 322, no Farol, Maceió, mãe e filha estavam sempre preparando passas de bananas. Estas eram colocadas, já sem cascas, em uma bandeja e, diariamente, expostas ao sol. Ficavam prontas, se minha lembrança for acurada, em cerca de dez dias. Faziam, também, elaborados doces de mangaba em compotas e de cascas de limão arrumadas de tal jeito que, segundo Ivan (não tenho tal lembrança), ficavam parecendo limões inteiros, depois de prontas.

Lembrei-me dessas coisas ao ler um dos capítulos do livro Maceió de Outrora, de Félix Lima Júnior, publicado originalmente em ano próximo a 1959 e reeditado em 2014. O livro é tão bom que resolvi reproduzir abaixo, ipsis litteris, uma parte grande do seu capítulo dedicado aos modos alimentares dos maceioenses no início do século XX.

Comes e bebes: Os costumes, a etiqueta e a moda
Félix Lima Júnior
(Extraído do livro Maceió de Outrora. Vol. I. Maceió, Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2014)

Nos primeiros anos deste século [XX], pela manhã às 7 horas, punham na mesa café, pão torrado com manteiga do sertão, dinamarquesa ou francesa, marca Lepelier ou Betei Frères; cuscuz de milho, de mandioca, de arroz; beijus de goma; rosca Palácio ou bolachas Simpatia. Pão de ouro, pão francês, roscas e bolachas adquiridas nas padarias Maceioense, Freitas, Boa Vista, Leão Branco, fabricadas com farinha Gold Medal ou Buda, vinda da América do Norte, em barricas.

Às 9 ½ horas serviam o almoço: carnes de sol ou do sertão, com farofa, filé paulista, arroz ou pirão; carne de porco assado com verduras; fritadas de siri, de sururu, de maçunin. Depois, doce de coco-verde, de goiaba, de groselha, de laranja-da-terra em calda.

Às 3 da tarde, na mesa forrada com alva toalha, estava posto o jantar: feijoada completa, com charque argentino ou uruguaio, tipo especial, nunca mais vendido em Maceió; maxixe, jerimum, quiabo, batata-doce, bananas compridas. Nas quartas e nas sextas-feiras apareciam o bacalhau ensopado, esplêndido bacalhau norueguês vindo em caixões, ou bolos de bacalhau, artigo mais barato, mais ordinário, importado em barricas, da Terra Nova, cavala, carapeba, bagre do Pilar, camorim, curimãs, “tainhas de meia banha”, como nos tempos coloniais, do olho amarelo, que alcançavam preços mais altos. Para sobremesa, doce de leite, de ovos, de jaca, de banana em rodelas, de araçá, e café, para terminar.

Para a ceia, às 6 ½ ou 7 horas da noite, cobriam a mesa com macaxeira, fruta-pão, biscoitos Leal Santos, requeijão, queijo do reino, vindo diretamente da Holanda, “tapioca de cavalo”, as deliciosas tapiocas enroladas em folhas de bananeira, trazidas em caçuás, do Riacho Doce, misturadas com beijus e grudes de goma. E bules de louça inglesa com chá Lipton, mate ou café-café da Refinaria Brenand, do sr. Manoel de Araújo Pinheiro, ali na Rua do Comércio, onde estão hoje [c. 1959] os escritórios e lojas da Cia. Alagoana de Fiação e Tecidos.

Depois, foi alterado o horário das refeições, creio que após os caixeiros (naquele tempo, eram caixeiros e não comerciários, como presentemente) terem conseguido que o comércio cerrasse às 6 da tarde: café às 7 horas, almoço às 12, jantar às 6 da tarde, abolindo-se a ceia.

Em algumas casas de famílias ricas ou remediadas serviam, às 3 ½ horas da tarde, um “lunch”, espécie de “five o’clock tea” britânico: Chá Lipton, mate ou café, massa-pão, manuês, biscoitos ingleses ou Colombo, tapioca de leite, bolo de rolo, fatias de pão torrado.

Nos meses de junho, julho e agosto, todos se fartavam de canjica de milho verde, bolo de milho, pamonha, milho verde assado e cozido.

Isso era o trivial. Nos domingos e feriados, nos dias de festa e de batizados, casamentos, noivados, aniversários, etc., apareciam guaimuns cevados, bebendo-se antes cálice avantajado do afamado “whisky de Vandesmet”, isto é, cachaça guardada pelo industrial francês durante alguns anos, em barris de uísque, polvos arrancados das pedras da Pajuçara e siris-moles vermelhos vindos do mesmo local; pitus magnifícos, saborosos, do Rio Mundaú; peru à brasileira ou galinha assada; e um prato raro, apreciado pelos gourmets, galinha d’Angola (“tou fraco, tou fraco”) ao molho pardo; buchada, mão de vaca, tatu, veado ou pacas, assim como perdizes. Os vinhos franceses, portugueses, italianos, espanhois eram apreciados. E quem dispunha de recursos servia-se de chamapnha francesa Pommery ou Veuve Clicquot, ou de vinho do Porto “Século Passado” ou “Dom Carlos”.

No Natal e no Ano Bom, era obrigatório o peru assado à brasileira, com fatias de presunto, azeitonas, farofa, figos e passas espanholas ou gregas. Uma vez ou outra melão “casca de cavalo”, vindo de Portugal, via Recife. À noite, doce-de-coco, baba de moça, bom-bocado, Mãe Benta, sequilhos, fatias douradas, puxa-puxa, broas de goma, etc.

No Carnaval – somente durante os festejos do Deus Momo – serviam filhós com mel, seguidos por copinhos de licor de tangerina, de leite, de jenipapo, uísque, quinado, vinho do Porto, Lacrima Christi. Apareciam os primeiros sifões, grande novidade. Na Semana Santa, como “obrigação de Quaresma”, traziam pratos de bredo, vitaminosos, gordurosos – uma delícia! – para uns, fazendo, porém, terrivelmente mal para outros que tinham estômago fraco ou doente.

À sombra das gameleiras do aterro de Jaraguá (atual Avenida Duque de Caxias) que seriam derrubadas em 1911, as baianas, as velhas negras da Costa, com suas saias rendadas, cabeções brancos, bem engomados, vendiam vatapá e caruru.

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