quinta-feira, 1 de junho de 2017

Mahler, Alma, Kafka e Werfel: O encontro que nunca aconteceu

Gustavo Maia Gomes

Este é um brevíssimo registro de quatro personagens importantes da cultura musical e literária europeia entre os últimos anos 1800 e os primeiros 1900, de como eles se encontraram, em alguns casos, e se desencontraram, em muitos. Outros serão citados, mas quatro são os protagonistas: Gustav Mahler (1860-1911), regente e compositor; Alma Schindler (1879-1964), compositora e pintora; Franz Kafka (1883-1924), escritor; e Franz Werfel (1890-1945), poeta, novelista e dramaturgo. Apresento-os pela ordem de nascimento.
Gustav Mahler nasceu em Kaliste, Boêmia, atual República Checa. Na época, uma cidade integrante do Império Austro-Húngaro. Como interessa à história, informo que Kaliste fica no caminho entre Praga e Viena, distando 100 km da primeira e 250 km da segunda. Considerado hoje um dos maiores compositores eruditos na transição entre os séculos XIX e XX, Mahler foi regente de sólida reputação, mas a música que produziu só obteve reconhecimento póstumo. 
A sua carreira como maestro e compositor sofreu limitações por ele ser judeu, numa época em que o antissemitismo em Viena (onde iria trabalhar a maior parte do tempo) dominou a imprensa, que passou a persegui-lo. Felizmente, nessa época, ele já tinha fama internacional e conseguiu compensar os prejuízos. Pouco antes de morrer, por exemplo, achava-se em turnê pelos Estados Unidos dando recitais como regente convidado de importantes filarmônicas locais.
Em 1901, Gustav conheceu Alma Schindler, vinte anos mais nova que ele. Os dois se casariam logo a seguir (1902). Apesar de sérios abalos, como a morte da filha Maria ainda menina e o envolvimento da mulher com o arquiteto Walter Gropius (1883-1969), que viria a ser o fundador da Escola Bauhaus, a união conjugal dos dois duraria até à morte do compositor. Mas, para superar o trauma de se saber traído, Mahler recorreu até a Sigmund Freud (1856-1939) que, em Viena, estava ganhando a vida como médico e escrevendo os livros que fariam dele o pai da Psicanálise. Freud aconselhou-o a parar de reprimir a carreira musical da sua mulher, que, após o casamento, fora forçada a se dedicar apenas a assuntos domésticos. Parece que os conselhos foram atendidos e tiveram bons resultados.
Alma Schindler, mais conhecida como Alma Mahler (ou Alma-Mahler-Gropius-Werfel) nasceu em Viena, a capital do então Império Austro Húngaro, onde seus pais, o pintor de paisagens Emil Jakob Schindler e a cantora Anna Sophie Berger, viviam modestamente. Emil foi um grande incentivador da filha, que cedo revelou talento para a música e gosto pela literatura. Intuição de pai: os anos à frente mostrariam que aquela menina era um vulcão. Além do interesse em música e pintura (que a fariam ganhar um nome para si própria, independente dos homens que conheceu ou com quem se casou), Alma era, também, uma mulher de grande beleza. O site que leva seu nome proclama ter sido ela “a mais bonita moça de Viena, entre 1879 e 1901”. Não sei se, depois disso, ela se tornou feia (hipótese contra a qual protesto) ou se apareceram outras concorrentes mais jovens. (E aí, meu filho, com a beleza dos dezessete anos, nem mesmo uma Alma como a Schindler podia competir.)
Para além da beleza e das qualidades, por assim dizer, magmáticas, Alma Schindler foi “uma das mulheres mais importantes, ativas e vitais do século XX, musa de muitos gênios da sua época” (Wikipedia). Depois da morte de Mahler, ela ainda se casaria com Gropius e com o poeta Franz Werfel, um dos nossos protagonistas aqui. Também, em diferentes fases da vida, foi amante do compositor Alexander Zemlinsky (1871-1942) e dos pintores Oskar Kokoschka (1886-1980) e Gustav Klimt (1862-1918). Isso é que é uma obra completa! De Kokoschka, confesso, nunca tinha ouvido falar. Mas, Klimt, na minha apreciação de não especialista, foi um dos mais extraordinários pintores de sua época.
Ao contrário de Mahler, Kafka e Werfel, Alma Schindler não era judia. Paradoxalmente, segundo uma biografia dela escrita por Oliver Hilmes e recentemente traduzida para o inglês (conforme o site da revista Mosaic, que afirma ter a missão de contribuir com a expansão do pensamento judeu), ela seria, mesmo, antissemita. Acho difícil acreditar.
Franz Kafka (1883-1924) foi um ficcionista de língua alemã nascido em Praga, (capital da Boêmia, também cidade do então Império Austro Húngaro, atual República Checa). Deixou a vida cedo demais. Enquanto viveu, teve seu talento reconhecido quase exclusivamente nos círculos literários da cidade onde nascera. Precisou a Segunda Grande Guerra terminar para o mundo descobri-lo e o elevar à categoria de um dos maiores escritores do século XX. Desde então, seu reconhecimento só tem crescido. É um dos poucos romancistas cujo nome produziu um adjetivo ("kafkiano") duradouro e de utilidades mil. Que palavra se aplicaria melhor à política brasileira neste insano presente?
Kafka é, de longe, meu escritor estrangeiro favorito. Descobri-o nos anos 1960, quando suas obras, em traduções de Torrieri Guimarães, começaram a ser publicadas no Brasil. Apesar de genial, entretanto, não era cosmopolita. Poucas vezes deixou Praga e, quando o fez, foi sempre em viagens de curta duração. Sua ligação com Viena foi breve, apesar de intensa, inteiramente epistolar, e ocorreu no ano de 1920, quando Gustav já não existia, embora Alma estivesse viva e casada, de fato, com Franz Werfel. Quanto a Franz Kafka, o interesse dele em Viena vinha de que ali morava Milena Jesenská (1896-1944), jornalista e intelectual, também, uma personalidade notável. 
Ela pretendeu traduzir algumas obras dele do alemão ao tcheco. Tiveram uns poucos encontros sob esse pretexto, em 1919. Foi o bastante para que, entre uma interrogação mal respondida e um ponto-e-vírgula bem pronunciado, Franz se apaixonasse por Milena, que era casada (numa relação infeliz, como sói acontecer). Foi correspondido. Quero dizer: mais ou menos correspondido, pois ela mandava e ele obedecia. Escreveu-lhe de Praga uma torrente de cartas, posteriormente reunidas em livro. Uma obra notável, aproveito para dizer: a Milena Jesenská vista por Franz Kafka apaixonado faz qualquer homem à moda antiga (ou seja, legítimo apreciador do gênero) querer atrasar o relógio e se mandar para a Viena daquele tempo.
Foi onde Kafka esteve, por apenas quatro dias, em junho de 1920, para encontrar sua paixão. Fora isso, Viena foi apenas o endereço de muitas cartas. No encontro ao vivo, quatro dias não deram para o gasto. É improvável que ele tenha visto outra pessoa humana além de Milena. De modo que, até onde pude saber, Franz Kafka nunca encontrou Gustav Mahler, ou assistiu um dos concertos de que ele foi regente. Nem jamais viu Alma Schindler, a mulher mais bonita da capital austríaca, nem antes, nem depois daquela visita. Como, então, ele entrou nessa história? Por intermédio de meu quarto personagem.
Franz Werfel nasceu em Praga, sete anos depois de Kafka. Sua obra mais conhecida é A Canção de Bernadete (1941), que virou um filme hollywoodiano de sucesso (houve outro, Eu e Coronel, se não me engano), mas ele já tinha livros publicados desde 1911. Werfel e Kafka foram apresentados em 1909 pelo também escritor Max Brod (1884-1968), biógrafo e testamenteiro de Kafka, a quem o mundo agradece ter descumprido as instruções dele de que suas obras inéditas fossem todas queimadas em seguida à sua morte.
Os dois Francisco, em regra, se respeitavam e admiravam. Mas também, ocasionalmente, tinham opiniões negativas um sobre o outro. Corre a história de que Werfel teria dito ao Kafka já maduro (e em tratamento contra a tuberculose que, afinal, o matou) que suas obras eram interessantes, mas nunca iriam ser lidas fora dos limites de Praga. Por sua vez, o autor de O Processo, O Castelo, das novelas “Metamorfose” e “O Julgamento”, entre tantas outras obras, distribuiu em seu diário observações ferinas com respeito à personalidade de seu colega escritor também judeu e de Praga.
Franz Werfel e Alma Schindler se encontraram, pela primeira vez, em novembro de 1917 na Viena que, então, disputava com Paris o status de capital cultural da Europa. Cito o site que leva o nome Alma Mahler: “quando Alma veio a conhecer o jovem poeta Franz Werfel, descreveu-o como um judeu gordo de pernas bambas e lábios grossos, mas ele não lhe causou repulsa. Ao contrário, uma ligação apaixonada irrompeu entre os dois”. Werfel, que era onze anos mais novo que ela, “viu em Alma sua salvadora, sua deusa, alguém que ele podia adorar. Sempre que era possível, a mulher o visitava no seu apartamento no Hotel Bristol e, após os dois terem feito amor, ela o despachava sem piedade de volta ao trabalho”.
Franz e Franz permaneceram amigos (alfinetadas à parte) até a morte de Kafka, em 1924. Ocasionalmente, o terceiro marido de Alma visitava seu colega escritor. Ou seja, durante os sete anos transcorridos entre 1917 e 1924, Franz Werfel conheceu (e se apaixonou por) Alma Schindler e continuou a ser amigo de Franz Kafka. Terão, um dia, os dois conversado sobre ela? E sobre Milena Jesenská? E sobre as semelhanças entre as duas mulheres-vulcão? Provavelmente, jamais saberemos.

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