sexta-feira, 16 de agosto de 2019

CARLOS RELEMBRA

Gustavo Maia Gomes
Quatro décadas depois de deixar União (desde 1943, União dos Palmares, AL), o advogado, jornalista e escritor Carlos Povina Cavalcanti (1898-1974) foi, em 1969, rever a cidade onde nascera. Depois, relembrou a infância num livro precioso para quem, como eu, gosta das histórias dos primeiros anos 1900 (e de outras épocas, também) nos rincões canavieiros.
Ainda mais quando essas histórias envolvem personagens de livros meus. É o caso: em Maceió, Povina foi recebido por Antonio Gomes de Barros (1915-76); em União, ele circulou guiado por Mariá Sarmento (1898-1974). De ambos, em “Uma Noite em Anhumas”, contarei episódios da vida, embora apenas Antonio seja meu parente.
Carlos relembra nomes de ruas palmarinas aos quais a gente se afeiçoava – como os das ruas recifenses antigas, que encantaram poetas. Em União, “a Rua do Comércio [hoje] tem outro nome: Correia de Oliveira, cronologicamente, o primeiro poeta [local]” (pág. 11); “a Rua da Fábrica era assim chamada porque uma companhia inglesa explorava o fabrico de óleo extraído do caroço de algodão” (pág. 24).
“A casinha ficava além da Rua do Carvão, numa elevação sombreada por altos castanheiros” (30). “Meu pai, (...) adquirira a casa da Rua do Virador” (32). Corria “a notícia de que a Chiquinha Máximo era mula-de-padre: [à] meia-noite, abandonava sua palhoça da Apertada Hora e demandava o caminho do cemitério, chocalhando guizos” (36). Havia a Rua do Cangote Liso (37); a das Cordas, em que moravam as mulheres da vida (52); a do Boi, próxima de onde um bando de ciganos acampou (54).
Ciganos, sim: “Tendas de lona, mulheres vestidas de pano multicor, argolas, brincos, colares de várias voltas envolvendo o pescoço, um lenço de seda na cabeça” (55). Espíritos também havia, em União. Os Cavalcanti foram morar em “um casarão de esquina, com grande quintal. (...) Meus pais ouviram que [a casa] era mal-assombrada, mas não não deram a menor atenção aos boatos”. Exceto por mandar “cortar o enorme pé de maracujá [pois] aquela planta (...) atraía maus olhados” (16). Na dúvida, duvide.
Superstições: “uma ave agourenta, [a] rasga-mortalha, quando, em noite escura, desferia seu canto, imitando o rasgar de um pano, até os adultos se benziam” (36). E o corcunda Vilela? “Meu pai me aconselhou que o evitasse: – É o sujeito mais azarento do mundo. Seu olhar fulmina como um raio; seus fluidos magnéticos têm um poder de morte irresistível” (37). Coitado do Vilela: ninguém lhe devia dar sossego. E o “preto velho, cachaceiro inveterado, mas inofensivo, que bebia até cair na rua”? (39) Era o Casemiro.
A feira, as comidas, as festas, os banhos de rio, os meses de Maio, as festas da padroeira, os pássaros, os poucos ricos, os muitos remediados, os pobres, as cavalhadas, quilombos e paus-de-sebo, a escola primária, a palmatória, o peru do Natal embebedado com aguardente, o “costurar-pra-fora”, o cavar botija, o primeiro palmarino padre... Tudo isso União tinha.
Chega! Em uma página, não posso fazer jus a 180 outras, bem escritas e ricas em conteúdo. Para quem quiser desfrutar de mais histórias da velha União, o livro de Povina Cavalcanti ainda pode ser adquirido num sebo virtual – essa oitava maravilha do mundo. Foi o que eu fiz, sem arrependimentos.
(Referência: Povina Cavalcanti, “Volta à Infância: Memórias”. Rio de Janeiro, Editora José Olympio / Instituto Nacional do Livro, 1972.)

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