sexta-feira, 16 de agosto de 2019

UM HOMEM BOM

Gustavo Maia Gomes
Zeferino Cefálico era um homem bom, defensor dos animais, amante das causas justas, ambientalmente consciente. Heterossexual solteiro, por solidariedade aos gays e lésbicas atendia a todas as chamadas de telemarketing, em penitência.
Amava os cachorros. Tinha ao redor grande número deles, que o lambiam de alto a baixo. Comendo no prato do dono e dormindo em sua cama, os cães emporcalhavam a casa toda, nela depositando montinhos de cocô, uns mais duros, outros mais moles, em que os visitantes pisavam.
Inconformado com a matança de animais, Zeferino desenvolvera hábitos alimentares de ruminantes: só comia capim, seis vezes ao dia. Era, digamos assim, radicalmente vegano. Além disso, amanhecia amaldiçoando os transgênicos, ia dormir combatendo os agrotóxicos.
Na sua casa, tudo era reciclado. Do sanitário, os resíduos iam para um tanque especial. Dali voltavam, para serem outra vez consumidos. O homem bom produzia o próprio alimento: o quilo de sua mandioca sustentável lhe saía por 280 reais. Da vaca ecológica, tirava o leite mais caro do mundo.
Praticava ioga, desenvolvendo a paz interior necessária para matar as muitas baratas que a sujeira ideologicamente justificada atraía e alimentava. Tinha coach e personal trainer. Durante trinta e cinco anos pagou sessões de terapia, ansioso por se curar de doenças inexistentes.
Em política, era de esquerda, por amor aos pobres, aos negros, aos direitos humanos e às causas ambientais. Defendia a ampliação das reservas indígenas. Queria a ressocialização dos assaltantes, a segunda chance para os estupradores, a décima-terceira oportunidade para os padres pedófilos.
Mas, havia um problema. Zeferino herdara do pai um mal que o faria esquecer tudo. Um processo lento, porém, inelutável. O médico diagnosticou: – Esquecimento global. O mar vai subir; as pessoas, derreter. Você de nada lembrará. Nem de seus cachorros, nem da ioga, nem dos pobres, nem dos gays, nem da mulher que não teve, nem das que sempre quis ter.
Cefálico ficou arrasado. Foi para casa. Ao entrar, viu os cães imundos prontos a lhe lamber, com a volúpia dos seres libidinosos. Agarrou-os todos e os jogou embaixo do trator que passava na rua naquele instante. Da carne moída, preparou um churrasco. E chamou os amigos.
Entortou os canos, fazendo o esgoto desaguar no chão da cozinha. Trocou as sessões de ioga por touradas na Espanha. Processou o terapeuta, acusando-o de charlatão. Mandou o personal trainer pagar as contas do coach. E vice-versa. Fez todo mundo saber que detestava índios. Defenestrou negros, gays, lésbicas e aleijados.
A verdade é que, depois do esquecimento global, Zeferino Cefálico nunca mais foi o mesmo.

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