terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

FACADINHA, LESEIRA E PENSAMENTO

Gustavo Maia Gomes
Recife, 17-1-2019
Já escrevi aqui sobre “Arruar” (Mario Sette. Arruar: História pitoresca do Recife antigo. Rio de Janeiro, CEB, 1948. Há uma reedição da Cepe). É um livro que se lê com gosto. Ajudou-me muito, somado a outros, a imaginar como foi o Recife nos anos 1890-1920, pouco menos, pouco mais.
No capítulo XXI (o penúltimo), Mario fala sobre os “tipos de voga popular. Uns que ficaram conhecidos pela boemia, pela intemperança, pelo ridículo, pela turbulência; outros de melhor naipe pela evidência política, pelo ressalto intelectual, por uma projeção pública, ou por uma peculiaridade de feitio ou bom humor” (pág. 357).
Selecionei três: Dr. Facadinha, Leseira e Pensamento.
“Metido num fraque, com uma pasta vazia debaixo do braço, [Facadinha] passava apressado, como se tivesse a chamá-lo importantes negócios... Mas, ao ver uma cara estranha, parava e, com uma choradeira de doenças em casa, pedia-lhe cinco mil reis [a moeda da época] ‘emprestados’. Se a vítima pretextava não dispor dessa quantia, diminuía-a para dois, um, até 500 reis e, por fim, para um tostão. Era uma fachadinha, apenas” (pág. 359).
Na Rua Nova, “no ponto em que os bondes de burros paravam a fim de tomar a ‘sota’ [parelha de burros de reforço] que facilitava a subida da ponte, havia o cego Leseira. Ele próprio assim se chamava”. Pedia esmolas e, em retribuição, “tocava uma gaita e nela executava músicas em voga. Como esta: Sussu sossega / vai dormir teu sono. / Deixa essa menina / que já tem seu dono” (págs. 359-60).
“Pensamento vestia fraque e tocava flauta. De quando em quando parava numa esquina ou sentava na calçada e executava suas músicas prediletas. Não dispensava uma grande flor ao peito, nem a bacorinha. Contam que certa vez, diante de uma casa onde alguém se esforçava por acertar um compasso ao piano, sem consegui-lo, perdeu a paciência e bateu ao postigo. Aparece a moça que não aprendia a lição. E Pensamento ensinou-lhe como sair da dificuldade” (pág. 360).
Muitos outros tipos populares do Recife de há cem anos aparecem em “Arruar”: Padre Marreca, o subdelegado Pataca de Angu, Quaresma, Padre Carapuceiro, Bode Ioiô, Maracujá de Gaveta, Bairrinhos, Ô Ferro!, Tinisco, Madama Papoula, Cariri, Major Pataca, Budião de Escama... Deliciosos nomes. Havia também os tipos genéricos, como vendedores de caranguejo e de bonecas de pano.
De todos, gostei mais do Facadinha. Esse tipo não morre nunca. Devem ser poucos, no Recife, os que jamais foram abordados por alguém pedindo dinheiro para “inteirar” sua passagem de ônibus. Facadinha, facadinha.

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