terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

LOLITA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 20-1-2019
De todos os tipos relembrados neste espaço, em dias recentes, o único que avistei vivo e bulindo, nos anos 1960, foi Lolita. Era improvável alguém ir com frequência ao centro do Recife e jamais vê-lo. E ainda mais difícil ignorar que aquele homem baixo, negro, cabelos desgrenhados e mal vestido era quem era. Pois, antes de a palavra e a profissão terem sido inventadas, Lolita foi um grande marqueteiro de si mesmo.
Diz Rivaldo Paiva: “Vi Lolita, o maior ‘frango’ do Recife, cantar e encantar a todos os jovens anarquistas (...) e aos senhores pedestres ‘chapelados de uma pêga’ de conservadorismo” (Saudades de 60: O Recife ao Sabor de um tempo, 2002). “Frango” era a gíria pernambucana para homossexual.
Para compor seu tipo, ele pode ter-se inspirado no célebre Madame Satã, do Rio de Janeiro. Fato é que ambos atraíram a atenção de muita gente. Manuel Barbosa escreveu seguidas vezes sobre Lolita na Última Hora (1962-64) e no Diário da Noite, depois de 1964.
Geraldo Pereira, médico e cronista, perguntou: “E Lolita? Quem não lembra? Com o andar afeminado e cheio de trejeitos, [percorria] a cidade de ponta a ponta, se requebrando e cantando, muitas vezes, ou simplesmente cobrindo de pilhérias os incautos passantes, que coravam de tanta vergonha, com as espirituosas graças do homem que gostaria de ter nascido mulher e bem mulher” (2006).
Ou o sociólogo Roberto Martins: “Não vou transformá-lo em Jean Genet, tal como fez Sartre na França com o escritor e teatrólogo homossexual e também encrenqueiro. Mas Lolita não pode ser resumido. Lolita traz para as ruas do Recife a explosão das contradições sociais do Brasil” (Blog Sinal +, 5-3-2010). Não sei se isso é bom ou ruim, mas deve ser importante.
Pernosticismos sociológicos à parte, Lolita era um homossexual pobre, com fortíssima personalidade e intenso desejo de aparecer. Nas condições muito desfavoráveis de sua existência, conseguiu tornar-se famoso, ainda que o custo dessa fama fosse levar surras semanais da polícia. Numa dessas, em plena Avenida Guararapes, no centro do Recife, ele gritou para o soldado que o agredia: “bate, bate neste corpo que já foi teu”.
No dia seguinte, quase com certeza, Manuel Barbosa registrou a frase no Diário da Noite. E Lolita ficou ainda mais famoso e prestes a explodir, devido às contradições sociais que encarnava, sem sequer desconfiar disso.

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