sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A COMPOTEIRA

Gustavo Maia Gomes
Recife, 22-2-2019
Em “Baú de Ossos”, Pedro Nava (1903-84) relembra Irifila, “fera familiar, esposa-proprietária de Iclirérico Narbal Pamplona, dos irmãos mais velhos de minha avó paterna, pois nascera no Aracati [CE] a 14 de outubro de 1830”.
“Ninguém compreendia seu casamento” com o Comendador . “Ele era alto, desempenado, elegante, cheio de calma e distinção. [A] mulher era baixota, atarracada, horrenda, permanentemente irritada – de alma amarga e boca desagradável”.
Irifila odiava receber “e quando era constrangida a isso, fazia-o com ostentação e grosseria”. Já o marido “gostava [da] conversa de amigos, [a] degustação de bom porto e bons charutos, sua rodinha de jogo. E reunia os parceiros uma vez por semana para o voltarete e para a manilha”.
Um dia, Irifila chamou o marido e decretou: “não quero mais jogatina em minha casa”. Mesmo assim, o Comendador insistiu e “arrumou um grande encontro, justamente para obsequiar seu compadre, o terrível Visconde de Ouro Preto”.
A mulher fingiu satisfação, mas preparou o bote. “À hora da ceia, requintou-se. Nunca suas bandejas, seus bules e seus açucareiros de prata tinham tido tal polimento. Nunca tirara tanta toalha de renda das arcas e das cômodas perfumadas a capim cheiroso. Nunca seus guardanapos de linho tinham recebido tanta goma".
E que fartura, prossegue o memorialista. “Chá, chocolate, moscatéis, madeiras, portos. Os licores da França, da Hungria e os nacionais de piqui, tamarindo e jenipapo. E a abundância dos doces e dos sequilhos: língua-de-moça, marquinhas, veranistas, creme virgem e tudo o que é biscoito”.
Para culminar, “no meio da maior bandeja, a mais alta compoteira com o doce do dia – aparecendo todo escuro e lustroso, através das facetas do cristal grosso, de um pardo saboroso como a da banana mole, da pasta de caju, do colchão de passas com ameixas pretas, do cascão de goiaba com rapadura".
"O comendador resplandecente destampou a compoteria: estava cheia, até as bordas, de merda viva”. Nunca mais o Iclirérico recebeu ninguém em sua casa.
(Citações da terceira edição de Pedro Nava, “Baú de Ossos”. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974, págs. 29, 30 e 50.)

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