quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A VINGANÇA DE ARROJADO LISBOA



O DNOCS é o mais antigo órgão federal com atuação exclusiva no Nordeste, mais precisamente, no Semiárido brasileiro. Foi criado como Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) em 1909; virou IFOCS em 1919, o “F” representando “Federal”. Em 1945, passou a se chamar Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, seu nome atual, de onde deriva a sigla pela qual é conhecido.
A ex-Inspetoria é credora de grandes benefícios legados aos brasileiros (embora isso raramente seja reconhecido), mas nunca teve vida fácil. Ao contrário. Tendo sido, de 1909 a 1959, a única instituição federal responsável por amenizar os efeitos das secas sobre as populações atingidas pelo fenômeno, concentrou sobre si todas as reclamações daqueles que desaprovavam a maneira como isso era feito.
As mais devastadoras críticas diziam respeito à alegada apropriação pelas elites locais das verbas destinadas a socorrer as vítimas da estiagem, num enredo conhecido como “indústria da seca”. As objeções mais brandas – porém, em longo prazo, não menos corrosivas –, eram levantadas por economistas e centravam fogo no “enfoque hidráulico”, uma filosofia enraizada na cultura do DNOCS (desde 1909, dominado por engenheiros) injustamente descrita como significando que, para “combater as secas”, seria necessário e suficiente construir açudes.
O então prestigiado economista Celso Furtado e, sob sua inspiração, a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, criada em 1959) dos primeiros anos, escolheram o DNOCS como o perfeito bode expiatório – apresentando-o como uma espécie de antítese da bondade. Enquanto a nova instituição se vangloriava de ser “moderna”; a antiga era tida como superada e corrompida.
Para seus defensores, a modernidade da Sudene, que contrastava com o anacronismo do DNOCS, tinha múltiplas faces. Por exemplos:
(i) A Superintendência se vinculava diretamente à Presidência da República. Ela era, portanto, capaz de realizar o bem comum. Representava o Estado onisciente, benevolente e poderoso, tal como idealizado pelos intelectuais de esquerda. Seria imune às pressões dos mandachuvas locais, enquanto o velho DNOCS havia sido capturado pelos coronéis do Sertão, a tal ponto que sua ação beneficiaria os ricos, não os flagelados pelas secas.
(ii) A nova autarquia tinha sua “Bíblia”: o Relatório do GTDN, um documento alegadamente respaldado na melhor “ciência” econômica então conhecida. (À época, todo mundo sabia de cor que aquelas letras significavam Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste.) Em contraste, as ações do DNOCS, na interpretação dos economistas “modernos”, não teriam qualquer teoria a lhes garantir a coerência. Resultavam do mero empirismo; apenas refletiam as ideias primitivas dos engenheiros. (—Ora, onde já se viu combater as secas acumulando água!)
Mas, nada é tão cruel para os crentes como a passagem do tempo. Os primeiros cristãos tinham certeza de que Jesus voltaria em poucos meses – ou, no máximo, anos. Passados alguns séculos (dois milênios, de fato), precisaram revisar suas expectativas. O Terceiro Reich alemão, que iria durar mil anos, desapareceu em doze. Até o Império bolchevique, que parecia sólido como a vontade de Stálin, se acabou. Só a inocência de Lula não dá sinais de esmorecer.
Em palcos menos heroicos, a “moderna” Sudene brilhou, de fato, durante meros cinco anos. Sua estratégia de desenvolvimento não transformou o Nordeste, seja porque era incapaz disso, seja porque não lhe foi dado o tempo suficiente. Já o “infantil” enfoque hidráulico (que só podia caber na cabeça de engenheiros!) sacudiu a poeira e voltou ao pódio.

Afinal, o que é a Transposição do São Francisco senão a vitória de Miguel Arrojado Lisboa, primeiro “inspetor geral” da IOCS, sobre Celso Furtado, inventor da Sudene?

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