quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

AUTOMÓVEIS NO RECIFE


Gustavo Maia Gomes
(Trecho do livro “Uma Noite em Anhumas”, em preparo)

As mais antigas notícias de que havia um automóvel circulando em Pernambuco são de 1901. Comprado pela empresa Transportes de Goiana (PE), ele veio pela primeira vez ao Recife em março de 1903. Era um veículo para doze pessoas. De uso individual (ou, no máximo, do condutor e mais três pessoas), o primeiro carro a circular na capital parece ter sido um Renault trazido em 1904 pelo médico Octavio de Freitas.

Meios de transporte são uma condição necessária à existência das cidades grandes. Mas, não são só isso. Além da sua função utilitária, cada um tem as próprias conotações culturais e subjetivas. Bondes eram democráticos, dizia Gilberto Freyre. Carregavam ricos e pobres juntos e criavam espaços onde as pessoas de diferentes classes podiam conversar.

Pois, digo eu, automóveis são o oposto dos bondes: eles enaltecem a individualidade. Sinalizam o triunfo egoísta do seu dono sobre a distância, o tempo, os horários inflexíveis, a rígida separação entre o lar e a rua. Eu acho bom. O sociólogo de Apipucos que me perdoe.

Meu pai sentiu tudo isso agudamente. O automóvel era parte importante de seu mundo. Uma casa ambulante que, em percursos urbanos, o conduzia de ida e volta ao trabalho com rapidez, segurança e conforto. Ou à praia, nos fins de semana. Aos lugares de lazer, na hora que lhe aprouvesse. E que, nos deslocamentos interurbanos, o podia levar, como o fez, do Recife a Montevidéu, em poucos dias. Ou ao Chile. São Paulo. Rio de Janeiro. Maceió. Branquinha. À Fazenda Monte Verde. Como ele amava isso tudo!

O carro foi a glória, não apenas de Mauro. Seu antecessor, o cavalo, se cansava facilmente, tinha humores cambiantes, aplicava coices aleatórios, defecava na via pública, expunha os condutores à chuva e ao sol excessivo, podia morrer do dia para a noite e, pior de tudo, andava miseravelmente devagar. A máquina que carregava a si mesma era outra coisa.

Para usar uma palavra que detesto por conservadorismo, mas reconheço ser boa, o automóvel “empoderou” os recifenses – primeiro, os homens, depois, também as mulheres. É verdade que o idílio não duraria para sempre – não com a intensidade dos primeiros tempos –, pois as ruas se entupiram dessas máquinas andantes. Isso emporcalhou o ar, provocou congestionamentos e reduziu a velocidade média do automóvel para menos que a de um cavalo bem nutrido.

Alguns anos depois, numa espécie de pá de cal, as estradas ficariam repletas de armadilhas eletrônicas capazes de gerar seiscentas multas numa viagem do Recife a São Paulo, para felicidade dos governos e desgraça dos motoristas. Inclusive, dos cuidadosos e conscientes.

(Eu, de minha parte, após ter sido multado por não estar com os faróis ligados ao meio dia de um domingo ensolarado no Nordeste brasileiro, desisti de dirigir. Sem o temor da multa, só um imbecil acenderia lâmpadas em circunstâncias tais.)

Mas, enquanto durou, a era do carro foi ótima. Produziu gente mais alegre, mais otimista, mais convencida de que sua vida era melhor do que tinha sido a de seus pais. Claro que tudo isso se aplica apenas aos que podiam possuir um automóvel. E esses eram poucos. E daí?

Não devia me justificar, mas o faço: estou falando de automóveis. Não dos direitos fundamentais do homem, ou da extração de mais valia, ou da desigualdade de rendas, ou da inevitável derrocada do capitalismo financeiro internacional e monopolista cada vez mais saudável, apesar de tantos intelectuais acreditarem que bom mesmo era o socialismo.

Viva o carro!

(Publicado no Facebook, 1/11/2019)

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