quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

REMETENTE: PADRE CÍCERO


Gustavo Maia Gomes

O coronel Basiliano Sarmento (1845-1931) era o homem mais rico de Alagoas; padre Cícero Romão (1844-1934), o maior líder carismático do Nordeste. Basiliano ganhou dinheiro com a pecuária, o comércio e a agiotagem; Cícero, com doações.

Em verdade, o padre sempre viveu de forma modesta. Embora tenha acumulado razoável patrimônio, usava seus recursos em obras religiosas, como um conjunto de casa, colégio e capela que planejou construir em Juazeiro (CE). Coisa de mil contos.

Há uma carta de Cícero a Basiliano escrita em 20/2/1931, apenas um mês antes de o destinatário morrer. A notícia de que o homem estava nas últimas deve ter sido levada ao padre pelo capitão Emiliano Fernandes, que trouxe a missiva ao coronel.

Basiliano Sarmento não tinha herdeiros. Sua fortuna iria para o Estado, como o foi, inicialmente. (Até que apareceram parentes dos quais ninguém jamais tinha ouvido falar. Um deles contratou os advogados certos e ficou com tudo.)

Cícero percebeu a oportunidade e escreveu ao coronel “sobre uma causa da maior importância e que serve para o futuro de sua salvação depois da morte, porque o bem que nós fazemos a Deus e aos desvalidos e ao nosso próximo, Deus aceita e recompensa como feito a Ele, nos dando a salvação.”

O padre quer os bens do coronel, mas aconselha discrição: “Se determinar fazer a Deus e a Nossa Senhora o que peço, eu mando pessoa minha de toda confiança e patrício seu. [Mas,] não queira fazer isto público, porque as causas sem a prudência da reserva que devemos guardar sempre trazem falaços [boatos] e perturbações desagradáveis.”

Prosseguindo: “Dando a Deus o que Ele lhe deu, porque tudo o que temos é Deus quem nos dá, nada mais justo. O meu amigo não tem herdeiros forçados que o obriguem a deixar os bens em herança. [Tem], portanto, o direito, conforme as nossas leis, de os deixar para quem quer que seja."

(...) “Não é, portanto, desarrazoado que o senhor distribua sua grande fortuna, ou em testamento, ou em doação, toda ou em parte, a Deus, que foi quem lhe deu tudo, e dê a Deus nesta obra que vou fazer aqui no Juazeiro empregando o que assim deixar em minhas mãos.”

Não houve tempo para que as súplicas do padre Cícero fossem atendidas. Ou então o coronel Basiliano Sarmento preferiu que sua herança ficasse mesmo na Terra e fosse disputada pelos candidatos que, fatalmente, viriam a se apresentar.

[Citações retiradas de Antenor de Andrade Silva, “Cartas do Padre Cícero, 1877-1934”, Salvador, E. P. Salesianas, 1982, págs. 309-12. Agradeço a Cassio Silva, historiador de União de Palmares, AL, ter me chamado a atenção para essa fonte e me enviado cópias das páginas do livro com a carta de Padre Cícero a Basiliano Sarmento.]

(Publicado no Facebook, 17/8/2019)

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