quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

HONRA E DEFLORAMENTOS


Gustavo Maia Gomes
(Fragmento do livro “Uma Noite em Anhumas”, com previsão de publicação em 2020)

A noção de honra, no velho mundo canavieiro-açucareiro, tinha duas conotações principais. Uma a relacionava à satisfação dos compromissos financeiros. A outra remetia às mulheres, em geral, e à virgindade das filhas solteiras, em particular. “Perder a honra”, ser deflorada fora das condições aceitas pela moral da época, equivalia a expor a moça, seus pais e irmãos, à execração social.

A mulher trair o esposo também era uma desonra. As meninas andarem na rua desacompanhadas, outra. Ter uma amante permanente era tolerável, para o homem. Para as mulheres, um escândalo que podia lhes custar a vida.

Isso dito, o que mostram as curvas “Honra” e “Defloramento” no gráfico anexo? De 1850-59 a 1900-09, elas se comportam como deveríamos esperar: uma cai, outra cresce. Ou seja, a lenta dissolução da sociedade tradicional e de seus pilares teria sido acompanhada por um aumento dos episódios de desvirginamento. Menos controle social, mais transgressões. Menos honra, mais atentados à virgindade.

Há, porém, um aspecto desses dois processos que precisa ser mencionado. Nas décadas de 1850-70, quase todos os defloramentos noticiados tiveram como autores homens negros, crioulos ou pardos. E, como vítimas, moças pobres. A partir de 1870 (até 1900), em alguns casos, é provável que o deflorador fosse branco e a vítima, uma jovem negra. Significaria isso que as filhas da classe proprietária nunca eram defloradas antes do casamento? Claro que não: os episódios de defloramento nessa classe eram resolvidos sem os jornais saberem.

A partir da virada para o século XX, entretanto, a curva de defloramentos passa de ascendente para declinante, enquanto a da honra continua a apontar para baixo. Por quê? Uma hipótese explicativa é a seguinte: (i) com a honra, nada de novo acontece. O crescimento das cidades, intensificado nesse período, corrói os valores antigos. Há menos retórica sobre a honra, em consequência. (ii) Com os defloramentos, se passa outra coisa. O valor moral, antes absoluto, da virgindade começa a ser questionado – sobretudo, no Recife. E isso tem consequências peculiares.

Numa evolução ainda em curso, cada vez mais, “tirar a virgindade” de uma menina-moça, numa relação consentida, deixa de ser visto como um crime e passa a ser acontecimento rotineiro que não chega, portanto, às páginas dos jornais.

Ou seja: no âmbito da moral sexual, o avanço da sociedade urbana (somado à luta das mulheres) produziu significativa mudança da condição feminina no Recife, em Maceió, no Brasil. Para melhor, penso eu.

(Publicado no Facebook, 5/11/2019)

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