quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Julieta e João


Julieta Maia Fernandes (1904-93) e seu marido João Fernandes Lins (1903-97)


Gustavo Maia Gomes

Julieta Maia Fernandes (1904-93), nome de casada, foi a primeira filha de Júlio de Oliveira Maia e de Maria de Gois, que moravam em Atalaia, mas se mudaram para Branquinha (ambas cidades alagoanas) quando a menina era ainda bebê. Ela se casou com João Fernandes Lins, (1903-97), cujo pai, Antônio, fora amigo de Floriano Peixoto, o consolidador da República.
Vieram os filhos: Geralda, Jairon, José, Geruza, Jadir. João era afetuoso com eles; Julieta, um pouco seca, mas provedora e solidária. “Vovó era meio puritana”, escreveu Ricardo Maia, filho de Geruza. E autoritária, “uma espécie de madre-superiora no comando da casa e da família. O autoritarismo decorria de sua identificação com a tia-avó Tetê [Tereza de Jesus Maia, a matriarca dos Maia Gomes], figura muitas vezes lembrada com admiração e respeito”. Por Julieta, sim, mas não pelo marido. Pois Tetê fora contra aquele casamento. Considerava que a sobrinha, uma moça muito educada e prendada, podia conseguir pretendente melhor do que o “estouvado” João.
UM PERIGO
Não obstante o voto contra da tia-avó, em 1922, os dois se casaram. Para as circunstâncias da época, o enlace deve ter sido considerado feliz, pois Julieta e João viveram, oficialmente, juntos até o falecimento dela, em 1993. (O marido lhe sobreviveria por quatro anos.) Mas, não foi um casamento desprovido de tumultos e acidentes. Ela tinha fama de ciumenta; ele, de mulherengo. Devia ser, mesmo, pois nas suas memórias admitiu isso:
Se, por ter muitas companheiras, errei, não tenho remorso. Não sou um dos primeiros. Quando errei, tinha certeza: antes de mim, (...) Fulano havia errado. Mas, (...) não se olha o erro do rico, somente o do pobre. Se eu fosse rico, não pareceria um ousado. (...) Dizem ainda que errei, [mas] desconhecem os fatores de uma vida isolada. Arre, não me julgo errado não e não quero perdão se errei. Imagine se eu não o tivesse feito, o que eu seria? (João Fernandes Lins, O homem e o rio).
Por seu turno, as histórias de Julieta e de seu ciúme são muitas. Como esta, bem conhecida na família. Em 1973, Cacá Diégues dirigia Jeanne Moreau durante as filmagens de Joana, a francesa, na Fazenda Anhumas, em União dos Palmares. João Fernandes Lins era prefeito de Branquinha, município vizinho. Inventou de promover um jantar em homenagem ao elenco (que também incluía, dentre os estrelados, Pierre Cardim). Julieta, a primeira dama branquinhense, desconfiou daquilo e se recusou a comparecer ao evento. Achou, certamente, que o marido iria se “enxerir” para a famosa (e bonita) atriz.
Em outras ocasiões, Julieta deve ter protestado também de formas mais diretas, como João relembraria, mais tarde:
Minha esposa quando jovem era [um] perigo, levava a vida toda a me olhar – um cuidado tamanho que fazia dó. Começavam então as discussões – com brigas ou sem: vamos chorar! E eu blasfemava contra Deus por consentir aquele [seu modo de ser]. Os anos passavam na mesma agonia e eu apelando para, no final da vida, descansar. [De fato], aos quarenta anos foi amenizando; aos cinquenta não existia mais tanto calor e, com setenta anos, vivemos como crianças (João Fernandes Lins, O homem e o rio).
Nas palavras do neto Ricardo,
Vovó Julieta era a filha primogênita. Deve ter tido uma educação sentimental muito severa, a típica educação rígida demais que era reservada às meninas e mocinhas da sua classe social eivada de puritanismo. Isso, certamente, a deixara insegura na relação afetiva-e-sexual com seu voluptuoso marido. O resultado foram convulsivas crises de 'conversão histérica' (no sentido freudiano), que despontaram com a aproximação da terceira idade. Crises essas que sempre provocavam rigidez muscular acompanhada de terríveis dores ciáticas e problemas de coluna. Trocando em miúdos: vovó vivia, na própria carne trêmula, um típico processo psicossomático de “encouraçamento muscular” (na acepção reicheana). Tanto, que algumas vezes foi preciso tratá-la com massoterapia e injeções. (Ricardo Maia, via Messenger, 12/1/2020)
Apesar disso, nas lembranças da filha Geralda, as desavenças do casal não provocavam brigas abertas. Tipicamente, quando acontecia um desentendimento, Julieta desaparecia da casa – ela e a família moravam na fazenda Riachão da Serra –, para se refugiar no seu abrigo preferido. Ficava lá horas a fio, até João sentir a sua falta e encontrá-la sentada à sombra de um cajueiro, como se a árvore lhe desse um ombro amigo e confidente. Então, o marido bonitão e galanteador vinha com a fala mansa e com carinhos fazer as pazes com a mulher. E fazia, conseguindo trazê-la de volta para casa, de mãos dadas, os dois caminhando abraçados, ou ele a carregando nos braços.
MULHER DE FIBRA
Mas, nem só de ciúmes vivia Julieta. Ela era, também, muito trabalhadora. Enquanto solteira, ajudou muito seu pai na administração do engenho Flor do Mundaú. Na avaliação do neto Ricardo Maia, o patrimônio da família Maia Fernandes – formada pelo seu casamento com João – só foi acumulado por causa dela. Isso, na certa, ajudou-a a construir a imagem de uma mulher de fibra, imagem que carregou, orgulhosa, até o fim da vida. A obsessão pelo trabalho se devia também, provavelmente, ao trauma vivido com a venda – um tanto desesperada e desastrosa! – das terras de seu pai, Júlio Maia, ao primo e usineiro José Maia Gomes.
Logo depois dessa venda, prossegue Ricardo, “alguém da Branquinha, amigo da família de Júlio Maia, testemunhou a esposa do comprador confessar que o dinheiro pago por José Maia Gomes pelo engenho Flor do Mundaú era o que valia somente a casa-sede da fazenda”. Se foi mesmo assim, esse terá sido apenas mais um exemplo das usinas “engolirem” as terras dos antigos engenhos de açúcar.
Nos últimos anos de suas vidas, apesar de continuarem oficialmente casados, Julieta e João viveram a maior parte do tempo longe um do outro: ele em Branquinha, ela em Maceió. Viam-se, apenas, nos fins de semana. Escreveu o marido:
Tenho esposa e não tenho; vivo sozinho na fazenda. Conformado já me sinto em viver na solidão: faço versos e poesias, servem a mim de distração. No décimo-quarto dia de setembro do ano em curso (1982) completaremos, se Deus consentir, 60 anos de casados. Será que eu tenho direito a um total perdão?” (João Fernandes Lins, O homem e o rio)
Ainda o tema do ciúme?
REUNIÃO NO FIM DA VIDA
A separação de fato se prolongou por vários anos. Quando, finalmente, por razões médicas, João não teve mais condições físicas de viver sozinho na fazenda, deixou a administração das terras nas mãos dos filhos Jairon e José e mudou-se para Maceió. Foi um processo de adaptação complicado à vida na cidade, onde Julieta já residia há um bom tempo. Essa mudança, feita a contragosto, parece ter acelerado a decadência física do antigo fazendeiro da Riachão da Serra, segundo lembranças recolhidas pelo neto Ricardo Maia.
A casa para onde foi João Fernandes ficava no Centro de Maceió. Ele se alojou na parte de cima. Julieta continuou no quarto que deveria ser o do casal, no andar de baixo. Muito determinada e geniosa, decidiu que aquela dependência seria ocupada somente por ela, pois era “muito feio marido e mulher, depois de idosos, dormirem juntos”. Só essa ideia parecia constrangê-la profundamente. Tanto que, diz Ricardo Maia, certa vez, flagrou o avô forçando a porta do quarto, ameaçando nele penetrar, enquanto a mulher empurrava energicamente a porta tentando fechá-la, sem conseguir. João fazia aquilo com um sorriso no rosto, divertindo-se com os escrúpulos puritanos de Julieta.
Jeanne Moreau, àquela altura, era só uma recordação distante. Talvez, ainda viva nos sonhos, nada mais.
*****
NOTA: As informações sobre Julieta (Maia Fernandes, após o casamento) e João Fernandes Lins me foram passadas via Messenger-Facebook por seu neto Ricardo Maia e têm como fonte as lembranças dele próprio e de Geralda Fernandes Maia, filha de Julieta. Em várias ocasiões, copiei livremente o texto de Ricardo. Também utilizei passagens do livro de João Fernandes Maia O homem e o rio (Maceió, 1982), o marido fazendeiro, poeta e mulherengo de Julieta.

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